28 de março de 2024
Erika Bento

As Vidas de Sophie: Capítulo 18

capa livro 1
Capítulo 18
A noite se arrastou, lentamente, com Sophie cochilando e acordando a cada dez, vinte minutos. Quando o dia amanheceu, uma manhã ensolarada de outono, levantou-se com a ansiedade consumindo-lhe o fígado. Tentou controlar-se em vão.
— Sophi, vai dar tudo certo, fique tranquila! — assegurou Anne, acariciando-lhe uma das mãos que, inutilmente, segurava o garfo e girava em círculos nos ovos mexidos em seu prato — Do que você tem medo?
— Quer que eu enumere? — ironizou Sophie, com um risinho abatido nos lábios.
— Eu posso imaginar, mas você não estará sozinha.
— Eu sei, mas aqui dentro — apontou para a têmpora direita — sou só eu e sabe lá quem mais.
— Você acha que Thomas vai falar com você?
— Vai saber! — respondeu Sophie, encolhendo os ombros. — Quer saber qual o meu maior medo? — perguntou, olhando firmemente para os olhos verdes e duvidosos de Anne em silêncio. — Tenho medo de encarar as minhas próprias dores. Não foi isso que a Dra. Nancy falou? Que elas estão lá, em algum lugar? E eu sei que estão. Só não quero me deparar com elas.
— Eu posso te entender, Sophi. E, se eu estivesse no seu lugar, estaria morrendo de medo também. Não sei como você conseguiu viver assim todos esses anos! — exclamou, relaxando a cabeça em uma das mãos com o cotovelo apoiado na bancada
— Quando eu vi o horror em seus olhos na casa do Dr. Barkley… ah, Sophi, como você consegue?
— Não é tão ruim quanto parece. Eu já estou acostumada, Anne. Às vezes eu sinto tanto medo que a única coisa que me consola é saber que cedo ou tarde tudo vai acabar. É como em um pesadelo. A gente sabe que não é real. Pelo menos até agora não era — Sophie baixou os olhos e continuou. — Com Thomas é diferente. Ele é real, eu sinto que é. Ele não é um pesadelo na mente de uma pessoa qualquer que eu, por algum motivo, estou “recebendo”. Não. Ele é real e consciente do que está fazendo. Fazendo comigo! — olhou para a amiga com os olhos cheios de dúvida. —Por que, Anne?
— Eu não sei, Sophi… não faço ideia — respondeu-lhe, frustrada.
— Bom, só tem um jeito de saber o que vai ser de mim hoje. — inalou mais que profundamente. — Vamos lá? — intimou Sophie, levantando-se deixando todo o café da manhã no prato.
— E Jesse? — indagou Anne, levando os pratos do balcão para a pia.
— Ele vai nos encontrar lá — respondeu Sophie, esperando para enxugar a louça que Anne lavava. — Teve que ir antes das sete da manhã ao escritório para finalizar uns projetos que Adrian deve levar a um cliente — carregou no nome, mas Anne não percebeu ou não quis dar importância.
— É verdade, ele comentou comigo. Já era hora de esse trabalho terminar! — comentou Anne, balançando a cabeça.
— De lá, ele pega o metrô até Richmond. Talvez chegue até antes de nós.
— Se continuarmos aqui batendo papo, sim. Vamos! — exclamou Anne, puxando Sophie pelo braço e subindo com ela as escadas.
Greenwich nunca esteve tão longe de Richmond como naquele dia. Embora tivesse tomado realmente dois ansiolíticos, Sophie, sentia a ansiedade latente, como uma fenda se abrindo aos poucos em uma grande barragem. Dava até medo imaginar o que aconteceria caso ela rachasse de vez.
As mãos estavam trêmulas, a garganta seca e embora fizesse dezoito graus, sentia frio. Teria que confiar inteiramente nas pessoas a quem entregaria a sua vida: Brandon, Nancy e Barkley. E ela confiava. Não tinha outra saída.
Jesse e Brandon estavam sentados no grande sofá da sala de estar da casa dos Barkley quando Anne e Sophie chegaram. E os três homens conversavam sobre charutos cubanos, cervejas e música. Nancy e Kate tomavam um chá e falavam sobre cinema.
Sophie teve a impressão de estar em um normal encontro entre amigos e, por um instante, relaxou. Sentou-se ao lado de Jesse que segurava sua mão e, vez ou outra, acariciava-lhe o rosto, os cabelos e lhe beijava os nós dos dedos, delicadamente.
Brandon e Anne mantinham as aparências de apenas bons amigos e Anne sentiu-se constrangida. Embora tivesse sido um acordo entre eles, naquele exato momento, Anne achou que aquilo não fazia sentido. Estavam entre amigos, pessoas da mais alta confiança. Por que diabos esconder a relação? Profissionalmente não é legal, não neste momento. Explicara Brandon. Uma ponta de desconfiança começava a emergir em sua mente e Anne tratou logo de afundá-la de volta.
Quando o ritmo da conversa diminuiu, Barkley olhou os convidados por cima das lentes e disse:
— Nancy, Brandon, Sophie? Podemos começar quando vocês quiserem…
Uma brisa gelada soprou no estômago de Sophie esfriando rapidamente todo o seu corpo. Os seus escuros e assustados olhos encontraram os de Anne e depois os de Jesse e apenas sorriu; tentou sorrir. Seus lábios trêmulos traçaram uma linha ligeiramente ascendente. Jesse apertou sua mão em seus dedos, Anne lhe deu um suave beijo no rosto e sussurrou: Vai dar tudo certo.
Sophie levantou-se sentindo que deixara para trás a única certeza que tinha: ela queria voltar para aquelas pessoas que amava. Cada passo em direção ao estúdio de Barkley era um passo para trás em sua mente, chegando até o dia em que teve a primeira visão que, agora sabia, era o pai de Elena fazendo-a fugir do bombardeio. Nunca teve tanta certeza na vida de que estava caminhando na direção correta. Ergueu a cabeça, respirou fundo e seus passos se tornaram mais firmes e confiantes. Sophie estava pronta.
Brandon já tinha deixado tudo preparado ao lado da chaise localizada no fundo da sala. Atrás dela, havia duas pequenas mesas redondas que, antes, serviam de mesa de canto em algum lugar. Em uma delas havia um pequeno aparelho que mediria as atividades cerebrais, enquanto na outra havia um aparelho que controlaria a pressão e o batimento cardíaco.
Brandon lhe explicou como funcionava cada um e por que eles eram importantes. Sophie concentrou-se na explicação, mas bastaria lhe saber que aquilo seria útil para assegurar que tudo estava indo bem – ou não – dentro da sua cabeça. Sabendo que Sophie tinha tomado duas pílulas de ansiolítico, Brandon não lhe deu nenhum outro remédio, repreendendo-a por ter aumentado a dose por contra própria.
Nancy, por sua vez, acomodou-se ao lado do pequeno divã, em uma confortável poltrona de couro preto, enquanto Brandon conectava os aparelhos à Sophie – um pequeno prendedor na ponta dos dedos e alguns eletrodos nas têmporas –. Nancy se debruçou de lado alcançando um pequeno CD player no chão. Uma suave música instrumental começava a envolver o ambiente como uma bruma quente e densa.
Os olhos de Sophie acompanhavam nervosamente cada movimento na sala. Começou a sentir-se agitada e fechou os olhos. Tão logo terminou de posicionar os aparelhos, Brandon sentou-se do outro lado de Sophie e fez um sinal quase imperceptível para John que começou a escurecer a sala, fechando as grossas cortinas em tom caqui, tingindo a sala de um suave tom sépia.
Sophie sentia o coração bater forte e a respiração acelerar. A adrenalina subia a picos, embora fizesse uma força extraordinária para ficar calma. Como uma bênção, ouviu a voz de Nancy, rouca, suave e envolvente.
— Você está confortável, Sophie?
— Sim, sem problemas — mentiu em vão. Um dos aparelhos acusava o alto batimento cardíaco. Concentrou-se na música e tentou se acalmar
— Muito bem. A primeira cosia que você deve saber é que estamos aqui para garantir que você faça uma viagem com segurança e tranquilidade. Eu vou ajudá-la neste percurso e, a qualquer momento que você quiser retornar, basta me dizer que eu faço você voltar, com apenas um estalar de dedos, ok?
— Sim — respondeu, ainda com o coração pressionando a garganta, e as pálpebras ainda trêmulas.
— Ótimo! E agora, quero que você relaxe. Comece pelos pés, solte-os. Assim… agora, suba pelas pernas. Sinta-as pesadas, como se afundassem no divã, como duas pedras caindo em águas profundas… — a respiração de Sophie foi ficando cada vez mais longa. — Suas pernas e seus pés estão pesadamente livres, puxando o seu abdômen para baixo. Respire suavemente… assim… — Nancy podia ver o corpo de Sophie relaxando enquanto os braços, esticados ao lado do corpo, se afastavam lentamente, cedendo ao peso do relaxamento. — Concentre-se em seus ombros, agora… sinta como estão pesados e relaxados. Deixe que mergulhem junto com seus braços e mãos… assim …
Sophie abriu ligeiramente os lábios e Nancy viu que ela estava pronta.
— Agora, vamos fazer uma contagem regressiva partindo do dez, eu e você — a voz de Nancy estava quente, limpa e tão delicada que parecia flutuar. — Você vai ouvir a minha voz e contar mentalmente. Quando chegarmos ao zero, você vai me dizer o que você vê. E lembre-se, estamos todos aqui com você.
— Sim — concordou, com uma voz gutural.
— Dez… — começou Nancy num tom abaixo do seu — nove… oito… — baixou mais — sete… seis… — baixando mais e mais — cinco… quatro… — e então parou e Sophie pareceu não reparar. Estava já entrando em seu mundo e, pela primeira vez, seria guiada para dentro dele.
— Sophie?
— Sim — respondeu, sem expressão.
— Me diz o que você vê — ordenou Nancy, calmamente.
— Estou em uma sala escura… Sozinha, eu acho — Sophie franzia a testa e seus olhos mexiam rapidamente por baixo das pálpebras.
— Como você se sente?
Não sabia identificar as sensações. Estava calma, mas ligeiramente apreensiva enquanto seus olhos se acostumavam à escuridão. Pouco a pouco visualizou algumas portas, ou túneis, ainda não os distinguia claramente.
— Eu vejo… portas… passagens, eu acho.
— Muito bem, Sophie. Você está indo muito bem — encorajou Nancy. — Você quer passar por uma delas?
— Sim. Mas não sei qual.
— Não tenha pressa. Siga o seu instinto. Tome o tempo que for necessário. Observe cada uma delas e me diga o que você sente.
Sophie percebeu que estava no meio de uma sala redonda, a cerca de cinco metros de distância de cada uma das passagens. Virava a cabeça lentamente fitando uma a uma devagar. Eram três passagens. Uma à sua frente e outras duas, uma de cada lado. Olhou a primeira à esquerda. Não sentia nada, apenas um ligeiro entorpecimento. Virou-se para a que estava à sua frente e também não sentia nada. Quando encarou a última passagem do lado direto, o peito encolheu e puxou sua pele para dentro. Doeu. Um vulto se aproximava muito lentamente e Sophie sentiu vontade de correr.
— Tem alguém aqui. Tem alguém aqui! — disse, nervosamente apertando as mãos nas laterais do divã.
— Você consegue ver quem é? — indagou Nancy, tentando manter a calma, embora sentisse a tensão crescer na voz de Sophie.
— Não. Eu estou com medo! Quero ir embora daqui! — exclamou, agitando-se e, antes que Nancy pudesse lhe responder, ou se o fez Sophie não ouviu, deu alguns passos para trás, sentindo que aquela presença se aproximava cada vez mais.
Era apenas um vulto, algo fantasmagórico que estava se aproximando e Sophie tomou a iniciativa sozinha, correndo para a passagem à sua frente e, tão logo entrou, diminuiu o ritmo dos passos sentindo-se segura, protegida por alguma força invisível. As paredes eram rochosas e secas. Podia senti-las em seus dedos à medida que a passagem ia se estreitando, fazendo Sophie apoiar-se nas laterais. Cheirava a grama e flores.
Continuou entrando por ela, esperando que saísse em um campo florido ou algo assim, mas a claridade que esperava ver não surgia. Parou por um instante, olhou para trás e não via mais a sala onde estava antes. Hesitou. Não sabia se continuava ou retornava. Não ouvia mais a voz de Nancy e lutou contra a sensação de solidão que provava sempre que mergulhava em suas visões.
Mentalmente, dizia para si mesma que não estava sozinha. Fora deste mundo estavam Brandon, John e Nancy. Sabia que estava ali por um motivo e não perderia esta chance. Forçou os olhos para frente tentando encontrar algo que a encorajasse a seguir, mas não via nada. Mesmo assim, continuou. Deu mais alguns passos e ouviu a risada de uma criança. Um som acolhedor e divertido. Acelerou os passos em silêncio e a apreensão se calou dentro do peito quando uma luz suave surgiu ao longe. Sophie sabia que estava no caminho certo. Apressou-se sentindo a claridade envolvendo a menina lentamente e a viu dentro de uma imensa bolha de luz quente e aconchegante.
A menina corria de um lado para o outro com passinhos incertos. Ria deliciosamente, ingenuamente, como só as crianças sabem fazer. Desprovida de qualquer senso de crítica, livre e feliz. Sophie sentiu-se envolta por aquela alegria contagiante. Abaixou-se para chamar a garotinha, mas freou o seu ímpeto quando viu que a menina não estava sozinha. A outra pessoa era ainda um vulto não definido imerso na luz. Era alguém que pegava a garotinha pelos braços e a girava enquanto ela ria incansavelmente. Às vezes, a pessoa a colocava no chão e corria atrás dela, numa brincadeira onde a criança nunca se deixava pegar só quando se voltava e se jogava nos braços do outro.
Uma terceira voz surgiu. Era feminina e cantava um Parabéns a Você bem entoado. Parecia uma típica cena de família, cena que Sophie jamais vira e, naquele momento, sentiu um vazio imenso em seu peito. Vazio por nunca ter vivido algo parecido, vazio por não ter lembranças boas que a fizessem esquecer a infância dura que tivera. Fechou os olhos afastando todo tipo de pensamento ruim. Não queria estragar o momento, algo que ela queria gravar para sempre em sua memória. Fazer daquele momento uma lembrança sua, mesmo que não fosse dela.
A imagem tornava-se cada vez mais nítida e Sophie podia identificar os móveis na sala. Eram simples, mas bem cuidados. Um sofá, duas poltronas e, atrás deles, uma parede em arco com uma janela no meio camuflada por uma leve cortina. Havia uma passagem que dava para uma cozinha e, do lado direito, uma sala de jantar pequena, com uma mesa retangular com enfeites de aniversário. Somente os rostos eram ainda desfocados.
A menininha, no colo do pai, batia palminhas excitadas com as duas velinhas que cintilavam sobre o bolo. A mãe, do lado, cantava e sorria. No final da canção, a pequena curvou-se para fora dos braços do pai assoprando com dificuldade as velas que só se apagaram com a ajuda de um ligeiro sopro da mãe. Todos se abraçaram com grandes sorrisos e, logo depois, o pai apoiou a menina em uma cadeira pegando uma caixa embaixo da mesa. Sim, é o seu presente, pequena! Pensava Sophie, sentindo uma alegria inocente.
— Vamos, abra! — falou ele.
O pacote era leve, mas grande demais para as mãozinhas pequenas da aniversariante. Não contendo a excitação, ela tentou rasgar o papel com os dedinhos e o rostinho começou a entristecer. Sophie sentia a frustração crescer nos olhos da menininha.
— Eu ajudo você, meu anjo — disse a mãe, abrindo com delicadeza o pacote.
Havia ainda uma caixa e a garotinha olhou ansiosa para o homem que lhe sorria. Sophie forçou para ver os rostos, queria fixar aquela imagem para sempre, mas não conseguia. Assim como não conseguia ver o que tinha dentro da caixa, percebendo somente a euforia quase histérica daquela coisinha que saltava na cadeira e batia as mãozinhas de alegria.
A mãe, então, afastou-se, pegou algo dentro da bolsa e posicionou-se diante da mesa, ficando de costas para Sophie que, agora, tinha pouca visão do que acontecia na sala. Afastou-se vagarosamente para o lado para ver melhor a cena no mesmo instante que um flash piscou forte. Quando a luz voltou ao normal, Sophie empalideceu e seu sorriso caiu no rosto. Diante dela estavam um pai que abraçava carinhosamente uma criança e da sua mãozinha pendia uma boneca de pano que ela sabia, se chamaria Lucy. A sua
Lucy!
Sophie se lembrou da visão que teve com a fotografia de seu pai e, agora, os rostos tornaram-se nítidos. Sophie estava diante de si mesma, abraçando e beijando o rosto limpo e jovem de um pai amável e, de costas para ela, a sua mãe.
Sophie sentiu as pernas tremerem, a cabeça latejar, o coração acelerar exponencialmente e a respiração cada vez mais rápida e curta. Aquela não poderia ser a sua família. Não era assim que Sophie se lembrava da infância, mas aquele era o rosto do seu pai, livre das rugas, do inchaço da bebida e do peso da amargura. Sim, era ele, aquele homem que ela sempre odiara e que a tratara como um lixo estava ali, diante dos seus olhos, amando-a, sorrindo, beijando-lhe as bochechas e as mãos, girando com ela nos braços pela casa, dançando uma música imaginária enquanto ela, Sophie ainda pequena, ria escandalosamente.
Sophie fechou os olhos. Aquela imagem a feria profundamente. Tinha medo que estivesse sonhando com lembranças forjadas por ela mesma para ocultar toda a sua dor e saiu correndo de volta para a sala redonda e escura novamente. O caminho de volta foi bem mais rápido e logo estava no meio da sala, com as lágrimas que lhe desciam pelo rosto queimando a sua face.
— Eu quero sair daqui! Por favor, me deixem sair daqui! — gritava Sophie, limpando as lágrimas com o dorso da mão.
Seus gritos não permitiram que ela ouvisse os passos atrás dela, e sua emoção ocultou a respiração fria de alguém que se aproximava. Sophie ainda chorava e gritava e sentia o peito se apertar, espremendo tudo por dentro como uma prensa hidráulica. Quando sentiu uma mão cair sobre os seus ombros, gritou aterrorizada e virou-se.
— Não! Não! Não! NÃO ME TOQUE! SAIA DAQUI! — gritava e se debatia com uma imagem à sua frente.
— EU QUERO SAIR DAQUI! POR FAVOR! POR FAVOR! – os gritos de Sophie ecoavam pelo estúdio de Barkley enquanto Nancy e John tentavam arrastá-la de onde quer que ela estivesse.
— Volte Sophie, volte! Me ouça, Sophie! — exclamava Nancy em voz alta, sem gritar, mas firmemente. — Eu vou contar até três, Sophie, e você vai abrir os olhos — intensificou a voz. — Um! Dois! três! — e Sophie estava de volta. Soluçando, suando, gritando de pavor, com as mãos sobre o rosto e as pernas encolhidas em posição fetal.
— Shh…. Calma, Sophie. Está tudo bem, agora. Calma… Estamos aqui — dizia Nancy, ajoelhada ao lado do divã, abraçando a cabeça de Sophie e acariciando-lhe os cabelos.
— Shhh… está tudo bem.
— Eu o vi… — disse aos tropeços — Ele estava lá e ele era… bom! — Sophie soltou outro grito de dor, de raiva e de revolta.
Calmamente, Brandon foi tirando os aparelhos ligados ao corpo de Sophie. Fisicamente, estava bem. Embora sua atividade cerebral tivesse se elevado imensamente assim como os batimentos cardíacos, a pressão se manteve dentro da normalidade e Sophie não perdera a consciência. Brandon estava satisfeito, mas sabia que os efeitos da sessão de hipnose poderiam levá-la a uma confusão mental muito grande, bastava ver o estado ao qual ela havia sido reduzida.
Sophie tinha os olhos fechados, deitada de lado, abraçada aos joelhos, chorando baixinho como uma criança assustada.
— Sophie, você quer nos contar o que aconteceu? — perguntou Barkley, sentado na metade inferior do divã que Sophie deixara livre.
Ela não respondeu, nem em voz, nem em gesto. Permaneceu agarrada a si mesma ainda por longos minutos. Nancy e John não insistiram, sabiam que o retorno de uma viagem como aquela podia ser difícil. Nancy continuou a abraçá-la, alisando seus cabelos e beijando-a suavemente na cabeça, mas Sophie não reagia nem a isso.
Do lado de fora, ouviu-se uma discussão inflamada entre Anne e Jesse. As vozes, embora abafadas pela porta fechada, eram ouvidas de dentro do consultório.
— Jesse, não! Espera!
— Não posso, Anne. Eu sinto que tem algo errado — e abriu a porta do estúdio, deparando-se com a cena de Sophie minúscula, envolta em si mesma. Brandon em pé atrás do divã, Nancy debruçada sobre ela e John sentado aos seus pés. — O que aconteceu com ela? — perguntou Jesse em voz alta e, quando Sophie ouviu a sua voz, mexeu-se nervosamente. — Sophie… — chamou Jesse se aproximando — Sophie… olhe pra mim — implorou quase em um sussurro.
Sophie encolheu-se mais ainda tremendo de pavor, enquanto Anne, com os pés fincados na entrada da sala, segurava o choro com as mãos.
— Ela está bem, Jesse — disse Brandon em tom profissional, levantando-se e indo até ele.
— Bem? Vocês chamam isso de “bem”? — vociferou, tentando se aproximar do divã, impedido pelas pesadas mãos de John que balançou a cabeça negativamente para ele.
— Ela está apenas em choque, Jesse. É normal, por favor, espere lá fora — ordenou Nancy, visivelmente contrariada.
Anne puxou Jesse pela manga, que, em um só gesto, puxou de volta o braço aproximando-se de Sophie rapidamente. Ajoelhou-se ao seu lado, afastou os cabelos que escondiam o seu rosto e a olhou com piedade, enquanto ela retraia-se ainda mais.
— Oh, meu amor. O que aconteceu com você? — sussurrou com a voz trêmula.
— Jesse, ela está bem! — disse John, colocando a mão sobre o ombro de Jesse. — Por favor, deixe que ela leve o tempo que precisar para voltar para nós, está bem? Venha, vamos tomar um ar puro — falou John, levando Jesse para fora da sala.
Sophie ficou fechada dentro de si mesma por quase meia hora quando, finalmente, uma voz fraca saiu de dentro da sua garganta.
— Estou com sede…
Brandon saiu rapidamente da sala, pediu a John que trouxesse água e sorriu aliviado para Anne e Jesse, que o olhavam angustiados.
— Como você se sente, Sophie? — perguntou Nancy num tom maternal.
— Estou melhor — respondeu, ajeitando-se e arrumando os cabelos. — Eu… não sei se o que eu vi foi r-real ou não.
— O que você viu? — insistiu Nancy.
Sophie contou em detalhes o que vira e o que sentira e tomou todo o copo de água de uma só vez. Durante a narrativa, hesitou algumas vezes, chorou em outras, demonstrou raiva, frustração, dúvida e medo. E, no final, havia só dúvidas.
— É possível que sejam lembranças minhas? Da minha infância antes de… antes de tudo?
— Pode ser, Sophie — respondeu Nancy. — O que você conhece sobre o seu passado antes do seu pai morrer, ou antes das primeiras lembranças, quando o seu pai não era tão bom com você? — questionou Nancy, tentando manter-se profissional.
— Nada. Eu não me lembro de nada.
— Então, tudo o que você viu pode ser uma lembrança real, não pode? — Sophie tinha os olhos opacos, confusos e tímidos.
— Pode, mas pode ser uma fantasia, um desejo muito grande de ter tido algo bom — contestou, encolhendo os ombros, quase envergonhada. — Uma mãe boa, um pai carinhoso… e… minha boneca. Como pode ter sido um presente “dele”? — perguntou, enojada.
— É uma coisa a ser pensada, Sophie. O seu pai pode não ter sido sempre ruim, pode ter acontecido alguma coisa que o transformou daquele jeito. As pessoas mudam quando passam por situações traumatizantes. O alcoolismo também ajuda a tornar uma pessoa violenta, sabia? — Nancy tomava todos os cuidados para não afirmar nem negar nada, apenas conduzir Sophie para a sua autodescoberta. — O mais importante disso não é saber se é verdade ou não e sim, em que você quer acreditar.
— Eu sinto tanta raiva. Senti tanta raiva no final! — desabafou Sophie sem lágrimas, sem hesitação, apenas com um profundo rancor.
— Eu sei. Nós vimos, Sophie. Nós ouvimos tudo. Acompanhamos cada sensação sua através da sua fisionomia. O seu corpo todo, aliás, nos dizia o que você sentia e eu imagino que não deve ter sido nada fácil, minha querida. Nada fácil… — consolou, pousando a sua mão fina e macia nas mãos de Sophie fechadas sobre o peito.
— Se aquela garotinha era eu, tão feliz e tão amada, por que a minha vida mudou tanto? Por que? Poderia ter sido diferente? — Nancy suspirou profundamente sem saber o que responder. — Foi ela, não foi? A minha mãe o abandonou e ele perdeu a cabeça. Pirou, caiu na bebida e começou a descontar tudo em mim, não foi?
Sophie era pura revolta. O ódio que sempre sentira pelo pai, agora, estendia-se à sua mãe, uma pessoa que sempre fora indiferente para ela. Algumas vezes, chegou a pensar que a mãe pudesse ter sido vítima do pai, assim como ela fora e, por isso, tivesse fugido. Nem assim poderia perdoá-la por tê-la deixado com ele. Mas e se não fosse isso, e se ela simplesmente tivesse ido embora causando uma vida infernal para ela e para o pai? Imaginar que a sua mãe possa ter destruído toda aquela felicidade, imaginar que tudo poderia ter sido diferente caso ela não os tivesse abandonado, fazia Sophie sofrer em dobro.
— Sophie, não tire conclusões precipitadas. Esta foi apenas a primeira sessão. Você gostaria de fazer outras para aprofundarmos nisso? — indagou Nancy com compaixão.
Sophie baixou os olhos, desentrelaçou os dedos esticando-os e depois fechando-os fortemente. Pensou e respondeu.
— Sim. Eu quero ir mais fundo da próxima vez. Eu quero entender tudo, de uma vez por todas.
— Está bem, então. Brandon? John? Vocês estão de acordo? — indagou Nancy, percebendo que ambos estiveram calados durante todo o relato de Sophie.
Os dois concordaram e a próxima sessão foi marcada para dali a dois dias. Tempo para Sophie se recuperar e pensar sobre a primeira experiência.
Pouco a pouco, a casa dos Brakley foi se esvaziando. Primeiro foi Brandon que saiu apressado para atender a uma emergência. Depois, fora Jesse que pegou o metrô de volta ao escritório. Anne e Sophie voltaram para casa, sozinhas e caladas.
Anne não queria pressionar, mas estava ansiosa para saber o que tinha acontecido. Não gostava de ficar às escuras. A única coisa que sabia era que fariam outra sessão em alguns dias e detestou saber disso! Os gritos de Sophie e a imagem dela encolhida no divã ainda eram fortes demais para esquecer.
Sophie estava angustiada demais para repassar tudo em sua mente. Tentava afastar as lembranças, mas era impossível e, quando começou a contar sobre o ocorrido, não parou mais. No caminho para casa, falou e falou e falou deixando Anne atordoada numa montanha russa de sentimentos. Sophie misturava as sensações com os fatos e Anne não sabia se a amiga tinha passado por uma experiência positiva ou não. Quando ela finalmente se calou, Anne lembrou-se de respirar.
— Caramba, Sophi. O que você vai fazer com isso agora? — sentia as mãos suando, agarradas ao volante.
— Eu não sei. Mas, por alguma estranha razão, sinto como se a minha vida começasse a fazer sentido. Antes, era um grande vácuo. Tinha um pedaço faltando. Não é como qualquer criança que não se lembra da primeira infância porque não se lembra e pronto. Eu não me lembrava porque o que veio depois foi tão ruim, que me fez esquecer. É isso o que eu sinto, agora — Anne pensou em suas próprias lembranças, sempre no orfanato, mas ao menos tinha algo para lembrar. — E, mesmo que me deixe muito triste saber que tudo poderia ter sido diferente, pelo menos, agora eu tenho uma história — Sophie olhou para Anne concentrada no trânsito e perguntou. – Você me entende?
— Entendo. De verdade, eu entendo. Aconteceu o mesmo comigo quando o Dr. Barkley nos contou sobre o meu pai. Eu sempre soube que eles tinham morrido em um acidente, mas era um ponto cego em minha vida. Depois daquele dia, eu passei a sentir que eu tive um pai, que um dia me abraçou, chorou comigo nos braços, me amou! — depois de um longo silêncio, Anne finalizou. — Acho que, por pior que seja a verdade, é sempre melhor do que não saber nada.
— Você nunca esteve tão certa… — murmurou Sophie.
Outros longos minutos de silêncio se passaram até que Sophie mudou completamente de assunto, para relaxar o clima.
— Você e Brad me pareceram meio distantes nessa manhã. Aconteceu alguma coisa?
Anne torceu os lábios, pendeu a cabeça para um lado, encolhendo os ombros, e respondeu.
— Era uma coisa nossa, de não assumirmos nada ainda. Sabe como é, é tudo muito recente, mas também senti um clima estranho entre nós. Parecia que ele estava fugindo de mim — Anne apertou os lábios. — Ah, eu queria ser como você, viu? Apaixonar e desapaixonar como se mudasse o canal da televisão!
— Isso se chama sobrevivência, minha cara. Eu não confio nos homens — assumiu com uma amargura profunda na voz.
— E o Jesse?
Sophie não lhe respondeu. Não pensava em Jesse, mas em Paul. Por alguma estranha razão, apesar de ter omitido tanto sobre a sua vida, ela ainda confiava nele. Era a única pessoa que ela permitia errar. Talvez por ter ainda muitos créditos com ela. E, assim que chegaram a casa, Sophie chamou Paul no celular que ainda não tinha feito a pausa para o almoço, embora fossem já quase duas da tarde.
Sophie lhe contou rapidamente o que havia acontecido e ele disse que, infelizmente, não podia saber se poderia ser uma experiência real ou não. Ele simplesmente não sabia nada sobre o passado ou a família de Sophie. Mas tinha uma novidade. Ainda hoje, receberia todo o material vindo do Brasil e poderiam ter uma pista a seguir.
Sophie desligou o telefone com uma sensação trêmula no estômago e decidiu ficar em casa e pesquisar sobre as informações que Paul lhe dera. Algo lhe dizia que ele, finalmente, estava na pista certa. Tinha que saber mais sobre a África do Sul. Subiu para o seu quarto, decidida a dedicar o seu tempo à pesquisa, mas assim que abriu o armário para trocar de roupas seu olhar pousou diretamente sobre uma sacola na parte superior. Puxou-a e abriu-a. Sim, ela estava ali. Esboçou um sorriso, mas logo foi apagado quando reviu a cena da hipnose em sua mente.
Puxou a boneca Lucy e abraçou-a contra o peito com força. Inalou o cheiro de passado e sentiu o toque áspero do tecido em seus dedos. Sentou-se na cama lentamente e afundou seu queixo na boneca, controlando para que as lágrimas ficassem no lugar delas, no fundo do poço. Cerrou os olhos, apertou os lábios com força e virou a boneca de barriga pra baixo em suas pernas. Tateou o pequeno buraco e pegou a pequena foto amassada de um rosto outrora feliz com seus olhos verdes brilhantes.
Por que você foi embora? Por que você me abandonou? O rosto estava todo marcado por dezenas de dobraduras e alguns pequenos pedaços já tinham se destacado do papel. O desgaste do tempo e das inúmeras vezes que Sophie a manuseou transformaram a figura em uma irreconhecível caricatura.
Amassou a foto de novo, guardou a boneca na sacola e devolveu-a ao lugar no armário. Foi até o banheiro e jogou a pequena foto na privada. Deu descarga e observou a foto girar na água até sumir. Não sinta pena de si mesma! Censurou-se.
CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA

bruno

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