3 de outubro de 2024
Colunistas Walter Navarro

O mais finado afinado e imortal desafinado

Ontem, durante um momento de grande felicidade, uma tristeza que não tem fim.

A vida cruel matou meu único João Gilberto.

A esta altura do campeonato, da Copa do Mundo feminina, da Copa América masculina, tudo já foi escrito sobre João. Minha vez!

Quando outro show morreu, David Bowie, dia 10 de janeiro de 2016, eu estava em Lisboa e passei a noite e a madrugada assistindo, a bordo de vinho tinto, 1069 documentários e clipes em sua homenagem, em vários canais de TV. Principalmente os ingleses.

Dia seguinte, comprei todos os jornais, também europeus, e li o melhor comentário. Não deveríamos ficar tristes com a morte de Bowie, mas festejar o privilégio de dividir o mesmo mundo, a mesma época dele.

O mesmo vale para João Gilberto, um velha canção em meus cansados ouvidos, há pelo menos 40 anos.

Claro que, quando menino, eu comprava a Playboy só pelas entrevistas. Mas, numa delas, tinha a crítica de Nelson Motta, sobre o disco “Amoroso” (1977), de João Gilberto.

Pelas minhas mãos peludas, li esta frase inesquecível de Nelson Motta: “O bom gosto começa pela capa”.

Por causa desta frase e desta capa, comprei meu primeiro João Gilberto, até hoje, meu favorito.

João canta em português, inglês e até italiano, a maravilhosa “Estate” que, durante anos, achei, ingenuamente, que significava “estado”.

Quando descobri que “estate” era verão em italiano, a música ficou ainda mais saborosa e triste. João era um náufrago numa ilha triste.

E claro, depois de devorar todos os discos em vinil, pelas orelhas, só me faltava ver um show de João Gilberto.

E show de João Gilberto era quase missão impossível e sempre uma piada.

Ou ele se atrasava demais ou cancelava o show. Fazia parte de seu charme. Isso quando não parava de cantar, reclamando do barulho da plateia ou do ar condicionado que açoitava sua voz de veludo.

E que voz! Inveja de todas as mulheres que o tarado João Gilberto ganhou só no “sapatinho do sussurro”.

E que cara elegante! Sempre de terno e gravata como técnicos de futebol da Argentina.

Desafinando o coro dos contentes, não acho que João Gilberto é o pai da Bossa Nova.

Quem a pariu foi Tom Jobim. João foi o melhor padrasto da Bossa Nova.

Quem sou eu para divagar sobre a “batida” de João Gilberto? Para mim, batida é de limão e cachaça.

Mas João combina com vinho, whisky e grandes amores. Ele deveria ter sido garoto propaganda do Viagra.

Então, um belo dia de verão, ao lado da minha mulher amada, na minha cidade mais linda do mundo, Paris, num 7 de julho de 1989, exatamente há 30 anos, assisti ao meu primeiro show de João Gilberto, no Jardim das Tulherias. O exuberante Jardin des Tuileries, entre a Place de La Concorde e o Museu do Louvre. Ah! “Petit” detalhe.

O evento era parte das comemorações do bicentenário da Revolução Francesa.

E o show era triplo, com os músicos brasileiros mais queridos pelos franceses: Caetano Veloso, Jorge Ben e João Gilberto. Chico Buarque era completa e ilustradamente desconhecido.

João comportou-se na França, usando pontualidade britânica.

Definição daquela tarde, quando eu tinha verdes 27 anos? Mágica, impecável, inolvidável. Teria sido o mais perfeito fim do mundo.

Mas ainda bem que não foi.

Muitos anos depois, em Belo Horizonte, assisti, pela última vez, ao meu segundo João Gilberto. Foi no Minascentro, com outra namorada, provavelmente em 2002.

Definitivamente tive sorte. Nada de atraso, repertório perfeito, mas não tinha Paris. Tenho sorte. No meu único Tim Maia, no Rio de Janeiro, anos 80, o maluco gordo beleza também não repetiu a fama de cancelar shows.

Nunca aplaudi, ao vivo, Tom Jobim, imperdoável falha do meu currículo e do meu bolso.

Em compensação, duas vezes João e duas vezes David Bowie, em Paris.

Paris, de The Cure, Stones e Paul McCartney que cantou um enorme Feliz Aniversário para mim. Quer dizer, foi pro John Lennon, mas como faço aniversário, todo ano, no mesmo dia 9 de outubro, “merci” Mister e Sir Paul.

PS: Em homenagem, agora vou ao Paraíso, com João Gilberto, cantando em francês, “Que reste-t-il de nos amours”. O que resta dos meus amores? Muito pouco, cabe mais, mas a trilha sonora…

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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