Porque é o melhor canal da TV brasileira, o Arte1 deve ter quase zero de audiência. Tão Brasil!
Entre excelentes documentários, filmes, entrevistas, biografias; programas de música, dança, literatura e, claro, artes plásticas, o Arte1 tem uma emissão chamada “Saudade”.
“Saudade” pega depoimentos, definições de saudade, entre lusófonos; intelectuais e artistas portugueses, brasileiros, angolanos, moçambicanos…
É muito bacana porque cada definição é bem diferente, bem pessoal.
Tenho preguiça da palavra saudade porque, como vou fazer agora, na falta de outra coisa, sempre lembram que a palavra saudade só existe na língua portuguesa.
OK! Mas ela é bonita ainda em francês: “nostalgie”. Os franceses também dizem: “Tu me manques” ou “você me faz falta”. Como em inglês: “I miss you”.
Esta confusão de sentimentos existe porque realmente é difícil definir, num samba de uma nota só, o que é saudade.
Saudade é tão triste quanto um fado, tão trágica como um tango, tão só como um cabelo na escova ou no sabonete.
Eu como Machado de Assis e Brás Cubas, “não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
“Apesar de tudo, jantei bem e fui ao teatro”.
Não tive filhos, mas concordo com Chico Buarque, autor, para mim, da melhor e mais cruel definição de saudade: “Saudade é o revés do parto, é arrumar o quarto do filho que já morreu”.
Inconscientemente, como em outras 1069 músicas, Chico usou da antropologia.
Meu antigo, saudoso professor e orientador na Sorbonne I, Louis-Vincent Thomas (1922-1994), pouco antes de morrer, em sua casa, depois de frutuosa conversa, me presenteou com seu clássico, um “tijolo” de inteligência, “A Antropologia da Morte”. Com dedicatória!
Um dos capítulos, meu favorito, trata da “Vingança das Coisas”. Que vingança é essa? É aquela das pequenas coisas da vida. Aquelas coisinhas sem valor material que herdamos, pegamos ou roubamos.
Do meu morto mais querido, meu pai, por exemplo. Herdei ou peguei, porque não precisava roubar – nenhum dos meus irmãos ia querer – livros, revistas, peças soltas de ferro velho que ele adorava, entre outras “besteiras e velharias” que, agora, eu adoro. Como no “Quarto Verde” de François Truffaut.
Estas pequenas coisas se vingam, me emocionando, trazendo a memória de meu pai; ressuscitando suas manias, seus gostos, seus hobbies.
Não à toa, outro francês, em outro lindo livro, “As Coisas da Vida” de Paul Guimard, que virou belo filme de Claude Sautet, em 1970, toca poeticamente o mesmo tema.
Se vocês pegarem a sinopse do filme e o próprio filme, não vão pegar o espírito da coisa. Há que ler o livro para entender, de novo, a “vingança das coisas”. É muito mais que: “Pierre (Michel Piccoli), arquiteto na faixa dos 40 anos, sofre um grave acidente de carro. Arremessado para fora de seu veículo, em estado de coma à beira da estrada, tem flashbacks do passado e das duas mulheres de sua vida: a ex-mulher Catherine (Léa Massari), com quem tem um filho, e Hélène (Romy Schneider), com quem vive um conturbado relacionamento”.
No livro, lembro-me bem, nos flashbacks, “Pierre”, sabendo que vai morrer, não pensa apenas nas duas mulheres. Ele pensa também nas (pequenas) coisas da vida.
Ele imagina, por exemplo, a briga que haverá entre seus herdeiros por um “pequeno” Picasso que ele tem na parede. Ninguém sabe que, um outro quadrinho, sem nenhum valor, vale muito mais para ele, é muito mais representativo porque tem “história”.
Ele se lembra também de um isqueiro velho, que não funciona, que o pai ou avô ganhou ou trocou com um soldado alemão, numa trincheira, na 1ª Guerra Mundial. Isqueiro que, com certeza, para os outros, tem valor nenhum e que, assim, vai acabar no lixo ou, no máximo, no Mercado das Pulgas, lugar que adoro frequentar.
Para mim estas coisas têm energia, principalmente as … pequenas coisas da vida.
As pequenas coisas da vida não residem apenas na morte, mas também na vida efêmera, nas separações bruscas e brutais. Ela pode aparecer e te assombrar numa lata de cerveja Guinness vazia, uma garrafa ou taça de vinho idem, num sabonete líquido, num anel, numa calcinha, numa música do Belchior, em vulgares uvas e vulvas; num futuro que virou passado sem ser presente.
Mas voltemos à saudade de Chico Buarque, a “metade afastada e amputada de mim…”. A saudade que é o pior castigo, que é como uma fisgada no membro que já perdi”.
Passei o fim de semana, em Tiradentes. Na primeira madrugada, voltando à pousada, dei de cara, sem coragem, com enorme e bem desenhada frase num muro: “Saudade”. Embaixo, um coração.
Na noite seguinte, revi a grande saudade no grande muro e, logo depois, vi a mesma saudade mas, num muro menor. Quase chegando à pousada, lá estava a mesma frase, desta vez, escrita, com o mesmo cuidado caligráfico, numa lixeira.
Foi irresistível negar a lógica de que a saudade, como o amor, começa grande, vai diminuindo, até acabar no lixo.
PS: Em São João Del Rey, vi a mesma frase, pichada não sei onde. Era a mesma letra, mas não a mesma história, não o mesmo momento, que “já passou, já passou, recolha o seu sorriso meu amor, sua flor; nem gaste o seu perfume por favor, que esse filme já passou”.
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Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.