3 de maio de 2024
Colunistas Walter Navarro

Chama o L

Pau que dá em Chico dá em Buarque!

Se eu separar o Chico, do Buarque, ainda consigo ligar a tecla SAP e ouvir Chico Buarque no original. Grandes letras, melodias imortais.

E é até bom, útil, praticar este hábito. Uma aula de anatomia e ironia. Um show de ditados populares como “dar o braço a torcer”, “a cara à tapa” e “pagar a língua”.

No começo do ano, Chico disse que não canta mais um de seus clássicos – e são centenas – “Com açúcar, com afeto”. Por quê?

Por causa da idiotice politicamente correta, claro.

No começo, a música canta: “Com açúcar, com afeto, fiz seu doce predileto, pra você parar em casa. Qual o quê, com seu terno mais bonito, você sai, não acredito, quando diz que não se atrasa”.

Aí, o malandro – outra profissão que o Chico adora, a ponto de dedicar-lhe uma ópera – sai, faz samba, bebe todas, paquera e volta para casa, como um cachorrinho ou gato “que come peixe, sem ir à praia”.

“Quando a noite enfim lhe cansa, você vem feito criança, pra chorar o meu perdão. Qual o quê, diz pra eu não ficar sentida, diz que vai mudar de vida, pra agradar meu coração”.

E o que faz a “Mulheres de Atenas”?

“E ao lhe ver assim cansado, maltrapilho e maltratado, como vou me aborrecer? Qual o quê! Logo vou esquentar seu prato, dou um beijo em seu retrato e abro os meus braços pra você”.

Braços… Pernas mudaram de nome?

Chico não canta mais a linda e perfeita “Com Açúcar, com Afeto” porque ela é machista… O capilar e lapidar, Movimento feminista, concorda com ele.

Que coisa mais engraçada! Principalmente para as Mulheres das Cavernas, Chico sempre foi o “compositor com alma feminina”, antipatia disso…

Alma feminina porque, como bom apreciador do “sexo frágil e rosa choque de Rita Lee”, sempre escreveu inspirado no Kama Sutra: “O meu amor tem um jeito manso que é só seu, de me fazer rodeios, de me beijar os seios, me beijar o ventre e me deixar em brasa. Desfruta do meu corpo. Como se o meu corpo fosse a sua casa, ai”.

Ventre…e gente que não gosta do perfume, textura e sabor. Mas deixa pra lá do Catar.

Chico também não canta mais “Pelas tabelas”.

“Não canto mais porque fala ‘quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/ eu achei que era ela puxando o cordão’ ou ‘quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas/ eu pensei que era ela voltando’. Não dá mais. Era situada na época das Diretas Já. Ou seja, todo mundo batendo panela de camisa amarela, se eu cantar hoje [risos]”.

Se o Chico cantar hoje, todo mundo, além de bater panelas vai achar que ele está elogiando os milhões de brasileiros em frente aos quartéis, pedindo, exigindo, o que Chico mais prezou em toda sua longa trajetória, a liberdade? E Chico está contra estes brasileiros. O que será que será?

“Whatever Will Be, Will Be” (Que será, que será), responderia Doris Day. “Night and Day”.

Nesta toada, em breve, Chico poderá cantar mais nada do seu repertório e ainda vai repetir o mantra de FHC: “Esqueçam o que escrevi”.

Além da “alma feminina”, outro rótulo grudou em Chico, como em Caetano, Gil, Vandré et caterva, o de “cantor de protesto”, equivalente ao “pintor de domingo” e à definição “padres de passeata, freiras de minissaia e cristãos sem Cristo”, tão cara ao caro Nelson Rodrigues.

E ainda tínhamos; como entulho daqueles anos de chumbo, a patrulha da esquerda festiva ou caviar. O equivalente, hoje, ao “socialista de iPhone” ou de shopping center, tudo a mesma merda hipócrita.

Todavia e cotovia, o “Chico de Protesto” tem outra pérola que vai doer nele e em muita gente. Ou não, porque o óleo de peroba é ótima anestesia.

A pérola é “Acorda amor”, mais conhecida pelo apelo de “Chama o ladrão”. Era uma alusão, uma brincadeira, mais uma ironia contra a violência policial nos mesmos “anos de chumbo”, a década de 70, em especial, durante o regime militar que eles chamam de ditadura. Nunca vi rodízio de ditadores, mas vá lá!

Um trechinho: “Acorda amor, eu tive um pesadelo agora, sonhei que tinha gente lá fora, batendo no portão, que aflição. Era a dura, numa muito escura viatura, minha nossa santa criatura. Chame, chame, chame lá, chame, chame o ladrão, chame o ladrão”.

KKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKKK.

Além de chamar o Lldrão, Chico votou nolLadrão. E hoje, porque tem gente lá fora batendo no portão ou tocando o interfone às 6h, nós, em vez de chamarmos a polícia e o ladrão, estamos suplicando pelo Exército! Santa reviravolta, Batman!

A estratégia funcionou com o Chico e funcionou com a gente. De tanto chamarmos o Messias, Deus nos enviou o Jair Messias… E é bom Deus já ir acostumando porque não vamos parar.

Tem outro detalhe hilário na música. Naquela época tinha muita censura.

Tinha tanta censura que, no disco, “Sinal Fechado” (1975), Chico teve que gravar músicas alheias. Tinha tanta censura que, no mesmo disco, Chico assinou “Acorda amor e Chama o ladrão” como “Julinho da Adelaide”.

Ah! Julinho é primo do Waltinho da Adelaide, talkey?

No mais, como é bom viver no Brasil de hoje, 100% livre e sem censura, não é verdade?

PS: Ontem, a Croácia venceu o Marrocos. E agora? O que será de mim? Minha vida nunca mais será a mesma. Daqui a pouco decido se mudo para Buenos Aires ou volto para Paris.

Walter Navarro, Timbuktu, 18 de Dezembro de 2022

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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