26 de abril de 2024
Colunistas Walter Navarro

A Fera de Kumaon

Imagem: Google Imagens – YouTube

É um filme em P&B, de 1948. Filme B. Filme Z. Kumaon fica na Índia e a fera, no caso, é um tigre de Bengala, tigre devorador de homens. Filme esquisitão. Esse negócio de ser devorador de homens, pescador de homens, sei não…

E Bengala? E o Kid Bengala, ator pornô? Tô fora… Tigre comedor… Passava a bengala… Comia todos…

Omar Lúcio era figura folclórica em Barbacena. Filho de tradicional família, era muito inteligente e, por isso mesmo, talvez, não batia bem das bolas, lé com cré.

Não é à toa que Barbacena tem fama de apedrejar aviões. Omar Lúcio, certa feita (levado por meu pai, que trabalhava na Petrobras – muito antes dela ser destruída e dominada pelas saúvas do PT) visitou a refinaria de Paulínia, arrabaldes de Campinas (SP), onde morávamos. Omar Lúcio, entre tanques cheios de gasolina, óleo e outros inflamáveis, acendeu um cigarro. Alertado sobre o perigo, desculpou-se e enfiou o cigarro aceso dentro do maço.

Em outra, indo almoçar lá em casa, num belo domingo, Omar Lúcio tocou a campainha. Ninguém ouviu e ele tentou pular o portão. Foi impedido pela polícia e quase preso, não fosse a intervenção de meu pai. Neste mesmo dia ou em outro almoço, Omar Lúcio ganhou um apelido: Cospe-arroz. Tudo isso porque minha mãe o tratou de senhor. Com a boca cheia, começou a rir e se engasgar, mandando arroz pra tudo que é lado. Mas o principal traço do saudoso Omar Lúcio – que a terra lhe seja leve – é que ele repetia todas suas histórias, contava todas de novo, inúmeras vezes. Então, só lá em casa e apenas quem convive conosco intimamente, sabe que Omar Lúcio é sinônimo pra gente repetitiva que conta tudo, em detalhes, duas, três vezes.

Minha tia avó Lela, casada com Aristeu Stefani, irmão de minha avó Rema, era velhinha, mas ainda mandava bem no garfo. Uma vez, depois do almoço, isso em Barbacena, há muitos anos, meu pai começou a recolher os ossos de um frango assado e no final, diante de uma pilha avantajada, vaticinou: “Isso aqui é só da Lela…”. Até hoje, quando a gente vê um comilão ou comilona, usamos o mote “Isso aqui é só da Lela”. Lela, Omar Lúcio, Fera de Kumaon e Dileta.

Dileta era uma “véia”, mas tão “véia”, de Barbacena, amiga da família Navarro há milênios, que parecia já ter nascido com 80 e tantos anos. Dileta era casada com Alírio. Vejam que nomes fantásticos! Eram pais de Juline que tinha umas mãos esquisitas. Meu apelido, até hoje, é “Mão de Juline” porque acham que sou meio desajeitado pra manusear certas coisas. Mentira, exagero, mas, como prova a ilustração desta crônica, até em Paris, pegavam no meu pé. Virei “Mão de Julice”, por causa desta lavanderia no Quartier Latin. Pode?

Mas, de novo, meu pai, quando era um moleque brincalhão e gozador, compôs uma modinha satírica sobre a personagem: “Dileta, Dileta, seu nome quer dizer ‘Querida’. A Dileta quando vai lá na avenida, todos gritam, ‘Querida’. Quando ela passa é um verdadeiro delírio, tudo que vê diz que vai comprar para o Alírio. Dileta, Dileta….”.Vou ao êxtase imaginando os transeuntes, em delírio, gritando ‘Querida’! Parece uma ópera! Meu pai era uma peça que, no fim da vida, parecia amargurado e entediado com a… Vida! deu no que deu!

“A Fera de Kumaon”? Durante anos repeti este mantra, sem saber o que era. Eu achava que era invenção de meu pai. Nunca imaginei que fizesse sentido em outro assunto, como o cinema de 1948. Meu pai tinha problema com quem comia demais. Ele dizia que o ideal era sair da mesa sentindo fome, podendo comer o que acabara de ingerir. Foi ele também quem me alertou sobre a nojeira que é a fabricação da salsicha que até hoje adoro comer, principalmente em cachorro quente. Só fui concordar com ele, depois de ver uma exposição de Sebastião Salgado, sobre o assunto. Salgado vomitou e levou três dias para conseguir entrar num frigorífico nos Estados Unidos, cheirando a sangue e vísceras.

Pois bem, “Fera de Kumaon” era o apelido que ele colocou em minha irmã Adriana, que comia desbragadamente. Era gorda, enorme rolha de poço até a cirurgia no estômago. Hoje – e tomara que ela não leia isso, mesmo estando ao meu lado, neste momento – depois de “perder” trocentas arrobas, parece elefante de circo pobre.
Tenho muitas outras histórias, mas não muito espaço. Todavia, ainda uso Kumaon, Lela, Omar Lúcio e Dileta para meus melhores momentos e em meus melhores papéis. Rio sozinho com esta criatividade non sense de meu pai. Que falta ele me faz!

PS: No dia 18 de julho de 2015, meu pai, Walter Paraíso Ribeiro de Navarro, faria 92 anos. Morreu aos 77, quase 78, dia 11 de abril de 2001. Lamento muito, mas vejo que foi melhor para ele, que não envelheceu bem. Pelo menos escapou de boas: odiava Lula, a quem só chamava de vagabundo. Não viu Lula nem Dilma presidentes. Não viu o 11 de setembro daquele mesmo ano e muito menos o Brasil tomando de 7X1 da Alemanha.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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