4 de outubro de 2025
Cinema

O Alfaiate / The Outfit

De: Graham Moore, Reino Unido, 2022

(Disponível na Netflix em 1/2025.)

Cada um de nós conhece uma pessoa – ou mais de uma – daquele tipo assim emproado, empertigado, que fala e age de um jeito um tanto artificial, nada parecido com as pessoas da vida real. Conversam um tanto como se estivessem num palco, e sempre preferem o uso de uma palavra uma pouco menos usual – dizem, por exemplo, causídico em vez de advogado, convescote em vez de piquenique, sapecam um rendez-vous em vez de encontro.

O Alfaiate/The Outfit, produção inglesa caprichadíssima de 2022, é exatamente como essas pessoas.

Não que seja um filme ruim. Não é. É todo muitíssimo bem elaborado, em cada um dos quesitos técnicos e artísticos. O alfaiate do título é interpretado pelo excepcional Mark Rylance, de, para citar apenas três grandes filmes, Ponte dos Espiões (2015), de Steven Spielberg, Dunkirk (2017), de Christopher Nolan, e Os 7 de Chicago (2020), de Aaron Sorkin,

Mas é um filme emproado, empertigado. Um tanto presunçoso, metido – exatamente como o protagonista da história, o alfaiate.

O alfaiate nos é apresentado como um profissional dedicado, sério, experiente, cioso – até demais – de sua competência, da qualidade de seu trabalho. A ação se passa em 1956, em Chicago – o quando e o onde aparecem em um letreiro na primeira sequência do filme. É uma manhã de inverno rigoroso, e o alfaiate está chegando para abrir sua loja.

Vemos logo que é inglês, tem imenso orgulho em dizer que trabalhou na Saville Row, a rua londrina conhecida como a dos melhores alfaiates do mundo. E fica claríssimo para o espectador que ele se considera muito, mas muito, mas muito superior às pessoas que o rodeiam, naquele bairro periférico, pouco importante, de Chicago.

O bairro é dominado por um gângster chamado Roy Boyle (o papel de Simon Russell Beale, excelente). Por um desses acasos de que a vida é cheia, Roy Boyle havia sido o primeiro cliente do alfaiate, assim que ele se instalou naquele bairro. Têm uma boa relação os dois, o alfaiate inglês um tanto metido, um tanto esnobe, e o gângster chefão do pedaço.

Naquele momento, Roy Boyle estava tendo problemas com uma outra gangue, dos La Fontaine, que havia resolvido disputar seu território. E havia o boato de que tinha um informante, um dedo-duro, “um rato” passando informações para os La Fontaine – e talvez até mesmo para a polícia, o FBI.

A trama do filme – concentrada toda ao longo de um dia, e passada inteiramente dentro da alfaiataria – é sobre a relação entre o alfaiate e a gangue de Roy Boyle. Um conjunto de circunstâncias vai colocar em risco a vida do alfaiate.

A sinopse da Netflix é ótima – curta, explicativa e sem adiantar spoilers: “Na Chicago da década de 1950, um alfaiate britânico encara uma situação difícil quando sua loja se transforma em campo de batalha para um grupo de criminosos”.

“Não sou um costureiro; sou um alfaiate.”

Interessante: o IMDb assume que o nome do protagonista é Leonard. Posso estar enganado, é claro, mas me pareceu que o nome do personagem jamais é dito, em momento algum dos 105 minutos do filme.

A bela secretária dele, a única pessoa que trabalha com ele na loja, Mabel (o papel de Zoey Deutch, na foto abaixo) o trata, é claro, como “senhor”. E tanto Richie (Dylan O’Brien), o filho de Roy Boyle, quanto Francis (Johnny Flynn), o homem de confiança do chefão da gangue, que estão sempre ali na loja, o chamam ou de “tailor” ou de “English”.

Inglês ele é, sem dúvida alguma. Extremamente inglês, com aquele classismo que é característica de tantos ingleses. Mas “tailor” é uma definição que ele rejeita. – “I’m not a tailor; I’m a cutter”, ele diz.

Esse detalhe é importante. Embora os dicionários traduzam “tailor” como “alfaiate”, creio que a palavra signifique mais o que para nós é costureiro – algo inferior a alfaiate. Costureira é aquela senhora que faz concertinhos de roupa. Alfaiate é muito mais elegante – é o profissional experiente, tarimbado, o artesão que cria belas obras.

As primeiras frases que ouvimos no filme são do protagonista, que acaba de entrar em sua loja. Ele narra para o espectador fatos de sua profissão – e sua fala demonstra aquela característica de que falei na abertura deste texto, a coisa emproada, empertigada, metida a besta:

– “Para o olho nu, um terno parece consistir de duas partes, um paletó e calças. Mas essas duas aparentemente sólidas partes são compostas de quatro diferentes tecidos. Algodão, seda, mohair e lã. E esses tecidos são cortados em 38 partes separadas. O processo de medição, formatação e conjugação dessas peças requer não menos de 228 etapas.”

As legendas mantiveram a palavra inglesa mohair. A Wikipedia ensina que mohair também existe na língua portuguesa, e é sinônimo de angorá, “fio semelhante à lã, produzido a partir do pelo da cabra angorá”.

Ver este O Alfaiate/The Outfit é cultura, siô.

Aliás, “outfit” é traje. E The Outfit é também o nome de uma organização citada várias vezes no filme, uma espécie assim de Corregedoria do Crime, uma superestrutura que vigia as ações dos grupos de criminosos. Não um ente oficial, de algum governo, mas mantido pelos próprios donos do crime organizado nos Estados Unidos.

Os distribuidores franceses e italianos não quiseram saber: mantiveram o título original, The Outfit. Em Portugal foi exibido como A Prova – a prova de uma roupa, um traje, um outfit.

O alfaiate descreve para o espectador o seu trabalho

Depois que o alfaiate fala aquelas frases iniciais, vemos, em belas, caprichadas, estudadas tomadas, suas primeiras ações no início de mais um dia de trabalho. Ele faz um café e o toma, varre o chão de sua oficina – a loja tem diversos, diversos cômodos internos –, tira o paletó e coloca um avental sobre a camisa social imaculada, com gravata e colete idem.

Em menos de dois minutos, o filme, com direção de arte afiadíssima, montagem rápida e o talento gigantesco desse brilho de ator que é Mark Rylance, nos demonstra que estamos diante de um profissional extremamente cuidadoso, perfeccionista, que tem imenso orgulho do que faz.

Com a voz de Mark Rylance em off, vamos vendo então o alfaiate em seu trabalho de criação de um terno e ouvindo suas explicações:

– “O primeiro passo é medir. Mas isso não significa apenas usar a fita métrica…”

E por aí vai. Didaticamente. Doutoralmente. Emproadamente. (Na foto abaixo, Simon Russell Beale, que faz o chefão mafioso do lugar)

Uma história elaboradíssima, cheia de surpresas

Toda a ação concentrada em um único dia – desde o iniciozinho da manhã até a madrugada. Tudo acontecendo nos diversos cômodos da alfaiataria. Poderia perfeitamente ser a adaptação para o cinema de uma peça de teatro, mas não é. Não é uma adaptação de nada – é um roteiro original, ou seja, um roteiro baseado em história criada diretamente para o filme.

Os autores da história e do roteiro são Graham Moore & Johnathan McClain – e Graham Moore é também o diretor do filme. Este O Alfaiate é seu primeiro longa-metragem como diretor; nascido em 1981 na Chicago em que passa a ação, Graham Moore havia dirigido apenas um episódio de série de TV, Emmerdale Farm, e um curta, The Waiting Room (2008). E sido o co-autor, juntamente com Andrew Hodges, do roteiro de um filmaço, O Jogo da Imitação (2014), sobre o trabalho do genial matemático Alan Turing para decifrar os códigos nazistas durante a Segunda Guerra Mundial, que acabaria sendo a origem da ciência da computação. O Jogo da Imitação deu a ele o Oscar de melhor roteiro adaptado, quando estava com apenas 34 anos.

Seu romance The Sherlockian chegou à lista dos best-sellers do New York Times.

A história que Moore e McClain criaram sobre o alfaiate inglês e suas relações com os gângsters de um bairro periférico de Chicago é elaboradíssima, cheia de surpresas, de reviravoltas de fazer inveja a Harlan Coben, o cara que escreve romances policiais cheios de reviravoltas que não param de virar filmes e séries, em diversos países.

Uma história elaboradíssima, cheia de surpresas, de reviravoltas – quase tudo artificial como o plástico. Quase nada, na história do alfaiate, parece natural como carne, osso ou a vida real.

Isso, é claro, é óbvio, na minha opinião – que vale tanto quanto a opinião de qualquer um, não é melhor nem pior que qualquer outra opinião.

Os leitores do IMDb gostam do filme: ele estava, em janeiro de 2025, quando escrevia este comentário, com nota 7,2 em 10, média de 79 mil votos.

Os leitores do site agregador de opiniões Rotten Tomatoes gostam muito do filme, que estava com fantásticos 92% de aprovação no Porcornmeter. E os críticos também gostam: no Tomatometer, The Outfit estava com 86% de aprovação, na média de 173 resenhas consultadas pelo site.

Anotação em janeiro de 2025

O Alfaiate/The Outfit

De Graham Moore, Reino Unido, 2022

Com Mark Rylance (Leonard, o alfaiate)

e Zoey Deutch (Mable, a secretária da alfaiataria), Dylan O’Brien (Richie, o filho do poderoso chefão Roy Boyle), Johnny Flynn (Francis, o gângster de confiança do poderoso chefão Roy Boyle), Simon Russell Beale (Roy Boyle, o poderoso chefão do pedaço), Alan Mehdizadeh (Monk, guarda-costas de Roy Boyle), Nikki Amuka-Bird (La Fontaine, chefe da gangue rival), Chiedu Agborh (guarda-costas de La Fontaine), Michael Addo (guarda-costas de La Fontaine), John Gumley-Mason (freguês), Stephen Knox (freguês), Steve Chatfield (gângster), Michal Forejtek (gângster),

Johnathan McClain (agente do FBI)

Argumento e roteiro Graham Moore & Johnathan McClain

Fotografia Dick Pope

Música Alexandre Desplat

Montagem William Goldenberg

Desenho de produção Gemma Jackson

Figurinos Sophie O’Neill, Zac Posen

Produção Ben Browning, Amy Jackson, Scoop Wasserstein, FilmNation Entertainment, Focus Features, Scoop Productions, Troubadour Studios, Unified Theory.

Cor, 105 min (1h45)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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