16 de setembro de 2024
Cinema

Norma

De: Santiago Giralt, Argentina-Uruguai, 2023.

Nota: ★★★☆

(Disponível na Netflix em 2/2024.)

O cinema tem uma longa e bela tradição de obras sobre o crescimento, o amadurecimento, o rito de passagem da infância para a adolescência e da adolescência para a idade madura. Isso que em Inglês, essa língua capaz de exprimir em expressões curtas coisas que não temos na Última Flor do Lácio, se diz coming of age. Norma, coprodução Argentina-Uruguai de 2023, fala de um período da vida nem de longe tão mostrado nas telas: o da passagem da meia-idade para a velhice.

Norma se reinventa e reinventa sua vida quando está ali pelos 60 anos.

Esta é a trama do filme: a partir do momento em que recebe a absolutamente inesperada notícia de que sua empregada de muitos anos está deixando o emprego, tudo na vida de Norma muda. Na vida e nela mesma.

Até que há alguns fatos, alguns acontecimentos, mas a rigor, como escreveu um leitor do IMDb sobre o filme, pouca coisa acontece, assim, de extraordinário, de sensacional. Pouca coisa acontece – “not much happens”, escreveu o leitor no título de seu comentário. E, no entanto, a Norma que vemos no início do filme tem muito a pouco a ver com a Norma do final, 93 minutos depois.

Por tudo isso, Norma é daquele tipo de filme que depende basicamente, fundamentalmente, das atuações dos atores – em especial, é claro, da atriz que faz o papel título, a personagem que está presente praticamente em todas as sequências. E aí é que está, muito provavelmente, o que torna Norma um filme bom, simpático, agradável de se ver. A protagonista da história é interpretada, com paixão e sinceridade, por Mercedes Morán, que, além de ótima atriz, também a inventou, a criou: ela assina o roteiro original do filme, juntamente com Santiago Giralt, o diretor.

Uma mulher que nunca trabalhou, nunca teve profissão

Norma nasceu e sempre viveu em uma cidadezinha do interior, Las Tucas – e não gosta de lá. Diz que se sente sufocada ali. Na verdade, na verdade, Norma parece não gostar de muita coisa, conforme o espectador vai vendo. Não demonstra gostar muito de viver com o marido, Gustavo (Alejandro Awada), líder da Sociedade de Ruralistas do lugar, um sujeito que parece meio sem sal, sem açúcar. Gosta da filha única, Inês (Mey Scápola), médica, solteira – mas implica um pouco com ela, por Inês fumar, por não ter um marido ou sequer um namorado que pudesse providenciar um filho.

Com a única irmã, Beba (Mirella Pascual), está brigada faz tempo, quando a ação começa. Rompeu relações porque Beba disse alguma coisa a respeito do seu casamento com Gustavo – uma crítica que seguramente tinha fundamento, mas Norma entendeu como uma grande ofensa. A mãe, uma senhora de 80 anos, dá a ela só trabalho.

Ah, trabalho? Não, claro que Norma não trabalha. Provavelmente nunca trabalhou na vida. Questão de classe social, na cabeça dela e das pessoas de seu meio: mulher de bem não trabalha.

A única coisa que Norma fazia na vida, além das compras para a casa, era ter aulas de arte com mais algumas senhoras casadas com homens ricos.

Até que Rosa, Rosita (Claudia Cantero), comunica a ela que está se demitindo – isso na sequência de abertura do filme. Ah, meu… Vale a pena transcrever parte do diálogo sensacional. Rosa está sentada à mesa da cozinha, e diz que precisa conversar. A patroa se senta diante dela. Vemos ora Norma em close-up, ora Rosa em close-up, enquanto rola a conversa.

Norma: – “Aconteceu alguma coisa?”

Rosa: – “Não venho mais trabalhar.”

Norma: – “Como?”

Rosa: – “Vou embora. Me ofereceram um trabalho para dormir. Pagam bem. Alugo a minha casa e ganho um dinheirinho.”

Norma: – “Achei que você fosse parte da família.”

Rosa: – “Nunca sentei à mesa nas festas. Ficava olhando da porta da cozinha.”

Em uma deliciosa sacada dos criadores da história, o diretor Santiago Giralt & a Norma-Mercedes Morán, Rosa vai reaparecer bem no final da narrativa. Mas, como é no final, e é surpreendente, seria spoiler bravo falar mais sobre isso…

E a dondoca mulher do líder ruralista não existe mais!

Talvez as sinopses do filme, e também esse meu relato aí acima, possam dar a impressão de que tudo o que acontece depois na vida de Norma é por causa da demissão de Rosa. Acho que não é propriamente uma questão de causa e efeito – ah, foi porque Rosa foi embora que tudo aconteceu. Não, não é isso. A demissão de Rosa acaba sendo o fator que dá início ao processo – mas poderia ter sido qualquer outra coisa. Um pequeno acidente doméstico que a levasse a ficar de cama por alguns dias, por exemplo. Qualquer coisa.

O fato é que, a partir do momento em que, pela primeira vez na vida, passa a ter a obrigação de tocar todo o trabalho doméstico, Norma começa a pensar sobre sua vida. A se questionar. A fazer perguntas.

Há uma famosa passagem dos Três Mosqueteiros de Alexandre Dumas em que Portos, o que não primava muito pela inteligência, começa a pensar sobre como funciona o corpo humano no ato de correr, a coisa de botar uma perna para a frente, e depois a outra, e depois de novo a anterior… Por ficar pensando, exatamente no momento em que está fugindo de uma explosão, o pobre homem acaba se atrapalhando, tropeçando e caindo. Não me lembro se é exatamente isso, mas é algo assim.

Norma começa a pensar sobre a vida que levava – e aí começa a se questionar… E daí a pouco está experimentando maconha, e depois ficando muito amiga da psicóloga avançadinha de Buenos Aires que tinha ido dar com os costados ali na província, Judith (Lorena Veja), uma mulher muito interessante, e tomando com ela uns porres de tequila, e dançando agarradinho, em um bar no qual jamais havia entrado antes, em toda a sua vida, com Roberto (Marco Antonio Caponi), o jardineiro bonitão, e…

A dondoca mulher do líder ruralista de repente não existe mais!

“O filme caminha em ritmo lento”

Faço questão de transcrever o comentário do leitor do IMDb que que citei lá em cima. A rigor, a rigor, o comentário desse cara, que se assina tedcengel – não dá para saber a nacionalidade dele, só que não é argentino – é uma perfeita tradução do filme. Não precisaria que eu escrevesse coisa alguma.

Comentário de leitor é a melhor coisa que existe. Nada a ver com crítico de cinema, essa figura pomposa, metida, cheia de si, narigão empinado, aquele ar de que é mais inteligente de todos os demais seres humanos. Leitor vai lá e diz o que achou do filme e o que sentiu vendo o filme, e pronto.

O título é: “Agradável, mas não acontece muita coisa – Vá em frente e assista”.

“A história é sobre uma mulher de 40 e tantos anos (aqui ele se equivoca, creio) passando por uma espécie de crise da meia-idade. As atuações são ótimas, a forma de filmar é ótima. Há pitadas de humor aqui e ali. O filme caminha em ritmo lento, o que para mim não tem problema, mas pode ter para outras pessoas. Sempre que a personagem principal está focada em si mesma (o que acontece na maior parte do filme), sua vida parece estagnada – o que se manifesta através de insônia, abatimento, apatia. Ela descobre uma maneira que acha que vai tirá-la do medo. Nos momentos fugazes que envolvem a aproximação nos relacionamentos, as coisas parecem melhorar. O filme é passado na Argentina, mas na verdade poderia ser em qualquer lugar.”

Fiquei pensando, depois que terminou o filme e fui dar uma olhada na ficha técnica no IMDb, o que poderiam ter em comum Santiago Giralt e Mercedes Morán para escreverem juntos a história e o roteiro deste Norma.

Giralt é jovem, mais jovem que minha filha; é de 1977, e portanto estava com 46 anos quando o filme foi lançado. Mercedes Morán é da minha geração, de 1955 – estava com 68 anos quando o filme foi lançado.

(Na verdade, ela aparenta menos. O espectador tem todo o direito de imaginar que Norma tem aí uns 60 anos.)

Santiago Giralt gosta muito de temas que tenham a ver com a homossexualidade; seu filme Jess & James, de 2015, é, segundo o IMDb, um “road movie, uma história de amor, um conto sobre coming of age sexualmente carregado, passado nas paisagens míticas do pampa argentino”. A Judith que se torna amiga de Norma é lésbica. Enquanto Mercedes Morán não parece ter nada de homo – foi casada com o ótimo ator Oscar Martínez de 1987 e 2000, e teve três filhas. Mey Scápola, que faz o papel de Inês, a filha de Norma, é filha dela na vida real.

Um jovem diretor com insistência em temas gays. Uma veterana atriz hétero. Diabo, o que tinham em comum para sentar juntos e escrever uma história? Ahá! Os dois têm um mínimo múltiplo comum, sim: o interior, a cidade pequena.

Ela é de Concorán, na província de San Luís. Ele é de Venado Tuerto, província de Santa Fé.

Isso muito provavelmente explica por que Norma é uma mulher de cidade pequena, provinciana, e não de Buenos Aires, a bela metrópole em que se passa a ação de boa parte dos filmes argentinos. Las Tucas é um nome fictício – o que é a melhor maneira de dizer que aquela pode ser qualquer cidade pequena, provinciana, em que em geral as pessoas são mais conservadoras, caretas mesmo, do que nas metrópoles.

Este aqui é o quinto título de Mercedes Morán no + de 50 Anos de Filmes. Já estavam aqui, antes de vermos este Norma:

Clube da Lua/La Luna de Avellaneda, de Juan José Campanella, 2004;

Neruda, de Pablo Larraín, 2016;

Um Amor Inesperado/El Amor Menos Pensado, de Juan Vera, 2018;

Vosso Reino/El Reino, série de Marcelo Piñeyro e Claudia Piñeiro, 2021.

Mercedes Morán tem 68 títulos na filmografia, em uma carreira iniciada em 1980. Recebeu 13 prêmios e 14 indicações. Só ao prêmio da Academia Argentina teve quatro indicações, e levou para casa dois troféus, por O Anjo e Família Submersa.

Os momentos finais deste Norma me fizeram lembrar o tom docemente feminino, mais que exatamente feminista, de Speriamo che sia Femmina, no Brasil Tomara Que Seja Mulher, o Mario Monicelli safra 1986. Até porque o bebê que a filha de Norma, Inês, está esperando, em trabalho solo, é feminina, para grande alegria da mãe e da avó.

Anotação em fevereiro de 2024

Norma

De Santiago Giralt, Argentina-Uruguai, 2023.

Com Mercedes Morán (Norma),

Alejandro Awada (Gustavo, o marido), Lorena Veja (Judith, a psicóloga portenha), Marco Antonio Caponi (Roberto, o jardineiro), Mirella Pascual (Beba, a irmã), Elvira Onetto (Estela, a mãe), Mey Scápola (Inés, a filha), Claudia Cantero (Rosita, a empregada), Jenny Galvan (Turca), Eduardo Miglionico (Turco), Nenan Pelenur (policial), Nara Carreira (a professora de arte),

Argumento e roteiro Santiago Giralt & Mercedes Morán

Fotografia Guillermo Saposnik

Música Tomi Lebrero

Montagem Vanesa Ferrario

Direção de arte Lorena Bottaro, Graciela Oderigo

Casting Bruno Briccola Fernandez

Produção Ajimolido Films, El Cielo Cine, Los Griegos Films. Magma Cine, Prisma Cine.

Cor, 93 min (1h33)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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