
De: Magnus von Horn, Dinamarca-Suécia-Polônia, 2024
(Disponível no Mubi, Apple TV, PrimeViddo.)
Um cartaz desta incensada, premiada co-produção Dinamarca-Suécia-Polônia de 2024 traz três avaliações feitas pela crítica: “Puro cinema”, “Extraordinário” e “Terrivelmente belo… assustadoramente atemporal”. A Garota da Agulha é, sim, puro cinema, extraordinário. Quanto ao belo e o terrivelmente atemporal, tenho minhas dúvidas.
A realidade, a vida que o filme mostra é feia, horrorosa. Pobre, miserável. Tenebrosamente, pavorosamente, acachapantemente horrenda.
Propositadamente monstruosa.
A Garota da Agulha é um daqueles filmes feitos para ser – e parecer – grande. É um grande filme – toda a crítica, os festivais têm garantido isso, desde seu lançamento, em 15 de maio de 2024, na mostra competitiva de Cannes. De lá até fevereiro de 2025, quando vimos o filme, amealhou 22 prêmios e 38 indicações, inclusive ao Oscar e ao Globo de Ouro de melhor filme internacional/de língua não-inglesa.
Mas belo, propriamente, A Garota da Agulha não é.
E seria “assustadoramente atemporal? Não sei… Acho que a pavorosa história da garota da agulha Karoline e de Dagmar não aconteceria, de forma alguma, na Dinamarca de hoje – nem em qualquer outro país minimamente civilizado e não absolutamente miserável.

Só aconteceu, me parece. porque havia muita miséria na periferia de uma Copenhagen recém-saída da Primeira Guerra Mundial, muitas décadas antes da pílula e da disseminação dos vários métodos anticoncepcionais e da aceitação e legalização do aborto em boa parte do planeta – em especial ali na Escandinávia, o lugar mais desenvolvido e de melhor qualidade de vida do planeta.
A Garota da Agulha trata de mulheres que têm filhos que não planejaram, que não quiseram – e que se recusam a criar os filhos que tiveram por não terem condição de impedir que nascessem.
Mulheres que não planejaram, que não quiseram ter filhos, que se recusam a criá-los por não ter condições… Bem, essa realidade talvez seja mesmo terrivelmente atemporal, porque continua existindo, em especial nos lugares mais pobres ou mais submetidos aos dogmas religiosos.
Só por mostrar como é absurda essa situação que continua comum no mundo hoje, um século depois da época em que a ação se passa, A Garota da Agulha já seria um grande filme.
Tudo é muito pobre, muito triste, muito feio
Pigen med Nålen no original – e sua tradução literal mundo afora:
The Girl With the Needle, La Jeune Femme à l’Aiguille, La Chica de la Aguja, A Garota da Agulha. É um daqueles casos raros em que os distribuidores nos diversos países não ousam inventar outro título e seguem fielmente o original.
Pois é – e no entanto o título leva a um engano. A Karoline protagonista da história, interpretada por essa atriz impressionante, absolutamente fantástica, Vic Carmen Sonne (na foto abaixo), não é propriamente uma girl, uma jeune fille, uma garota. Está longe, bem longe de ser uma adolescente – é uma mulher vivida, calejada.
De 1994 (e de Copenhagen mesmo), Vic Carmen Sonne estava com 30 anos de idade quando o filme foi lançado. E a Karoline que ela encarna é tornada mais feia e mais velha por seu próprio talento e pela ajuda das equipes de maquiadores, cabeleireiros e figurinistas – e também do diretor de fotografia Michal Dymek, que, com o diretor e co-roteirista Magnus von Horn, optaram pelo preto-e-branco.

A fotografia em preto-e-branco é maravilhosa – mas o filme faz uma estudada opção pelo lado mais feio das coisas e das pessoas. Na primeira sequência do filme, Karoline está lavando as axilas no banheiro pequeno, acanhado, sujo, do apartamento barato, vagabundo em que vive. E é um sujeito feio, agressivamente feio, o locador do apartamento, que chega para dizer que ela precisa deixar o apartamento o mais rapidamente possível, já que faz semanas que ela não paga o aluguel, e uma candidata a locatária está para chegar.
O apartamento para o qual Karoline vai se mudar, o único pelo qual ela ao menos teoricamente pode pagar, pertence a uma velha também muito feia – e é ainda mais feio do que o outro que ela teve que abandonar.
A fábrica em que ela trabalha como costureira é feia.
O marido dela não dava notícias havia um ano. Devia estar lutando contra os alemães na guerra – embora a Dinamarca não estivesse oficialmente em guerra contra a Alemanha do Kaiser Wilhem II.
No que parece um golpe de sorte, o dono da fábrica, Jørgen (Joachim Fjelstrup), se interessa por ela. A primeira vez que o patrão come Karoline é ao ar livre, em um beco, à vista dos passantes. Um troço feio.

Ela chega a achar que o patrão vai se casar com ela.
É quando Peter, o marido (o papel de Besir Zeciri), reaparece – com o rosto horrorosamente mutilado, com certeza pela explosão de uma granada ou algo assim, na guerra. Karoline o rejeita, bota para fora da vida dela.
Mas não haverá casamento com o patrão. Ela perde o amante, o emprego, e ganha um feto na barriga – se é o que tem sentido usar o verbo “ganhar” nesse caso.
É só quando o filme está ali pela metade de seus duríssimos 123 minutos que surge a segunda personagem mais importante da história, Dagmar – o papel da fantástica, extraordinária Trine Dyrholm (na foto abaixo).
Karoline e Dagmar ficam se conhecendo numa casa de banhos. Karoline está com uma grande, gigantesca agulha com a qual pretende acabar com a vida do feto que cresce dentro dela. Dagmar – uma mulher mais velha, aí com uns 50 anos, acompanhada de uma lourinha que parece um anjo, de aí, sei lá, uns 10 anos – percebe o que Karoline está fazendo, dentro de uma pequenina banheira. Impede que a mulher continue, e diz que há uma saída melhor. Karoline poderá doar o filho para ela, que cuidará para que o bebê seja adotado por uma boa família, de um engenheiro, um médico; o filho será bem tratado, ela pode ficar tranquila.
O espectador verá que Dagmar parece ser a dona, digamos assim, de uma pequena agência de adoção de crianças.
Na Dinamarca, a história é bem conhecida, diz a Time
A Garota da Agulha não usa como peça de marketing o fato de que se inspira em fatos reais. Os cartazes do filme não trazem a frase “inspirada em uma história real”. Nem aparece essa informação para o espectador bem no início da narrativa – que é como fazem tantos e tantos filmes. A frase “inspirada em uma história real” está no filme, sim, mas só nos créditos finais.
Diz uma reportagem da revista Time de dezembro de 2024, assinada por Esther Zuckerman:

Fora da Dinamarca, a história real não é assim tão conhecida. Cuidadosos, os editores da Time colocaram este aviso no site: “Este post contém spoilers de The Girl With the Needle”. Cuidadoso como eles, eu repito: logo abaixo virão informações que são spoilers.
Atenção: o que vem a seguir é spoiler
O texto de Esther Zuckerman na Time prossegue com informações que também estão na Wikipedia:
“Entre 1915 e 1920, uma mulher de Copenhagen, Dagmar Overbye, se ofereceu para cuidar de bebês indesejados por uma taxa, dizendo às mães que eles iriam para um bom lar. Em vez disso, ela os assassinou. Overbye foi finalmente capturada e sentenciada à morte em 1921.
“A roteirista Line Langebek e o diretor Magnus von Horn não queriam simplesmente contar a história de uma serial killer em seu filme, que agora está disponível nos EUA pela MUBI e é o concorrente da Dinamarca ao Oscar na categoria de filme internacional.
“’O que ela fez diz muito sobre a sociedade que a cercava na época’, diz von Horn. ‘Ela não sequestrou bebês para matá-los. As mulheres vinham até ela e lhe davam bebês. Queríamos tentar explorar esse mundo.’”
A reportagem da Time diz que a personagem de Karoline foi “baseada na mulher que finalmente levou a polícia até a porta de Overbye, querendo seu bebê de volta. Von Horn e Langebek usaram licença criativa com sua história”.
Mais adiante, a reportagem informa: “Von Horn e Langeback fizeram uma extensa pesquisa que incluiu recuperar a transcrição de 122 páginas do caso judicial de Overbye do Arquivo Nacional Dinamarquês e revisar imagens do fogão onde a polícia encontrou os ossos de bebês cremados por Overbye. As fotografias, que von Horn descreve como assustadoras, serviram de base para o design de produção.”
A reportagem também explica que a Dagmar Overbye do filme é muito mais velha que a mulher real. De 1972, a atriz Trine Dyrholm estava portanto com 52 anos em 2024, no lançamento do filme, enquanto Dagmar Overbye, de 1887, estava com 33 quando foi presa, em 1920, dois anos após o final da Primeira Guerra Mundial.
A matéria da Time não informa isto, mas Dagmar não foi executada. Teve sua pena comutada para prisão perpétua, e morreu na cadeia, em 1929, aos 42 anos de idade.

Em uma passada pela internet, dei com uma crítica no site português C7nema, assinada por Jorge Pereira Rosa, que faz perfeitas considerações sobre o filme. Mesmo que me esforçasse, não conseguiria fazer uma avaliação melhor. Assim, lá vai:
“Inspirado em acontecimentos verídicos que ocorreram em Copenhaga após o fim da Primeira Guerra Mundial, o regresso de Magnus von Horn ao cinema após o destemido Sweat é um recreio de segredos imundos e escabrosos que abalroam o espectador do primeiro ao último minuto.
“No género de filmes contorcidos, sem nunca cair no efeito do choque pelo choque, The Girl With The Needle (A Rapariga da Agulha) junta à sua história macabra, com requintes de malvadez, o desempenho sensacional de duas atrizes em estado de graça: a inevitável Rainha de Copas Trine Dyrholm, e a impressionante Vic Carmen Sonne de Terra de Deus. A dupla, por si só, vale o filme, mas Magnus von Horn deixa em todo o lado o seu dedo, sem nunca se sentir um trabalho de mão pesada, onde a estética engole a história e interpretações. Existe, aliás, uma simbiose bem lapidada em todos os aspetos de construção fílmica, seja na direção de fotografia de Michal Dymek (EO), que carrega o seu filme com um preto e branco que tanto brilha como soterra o espectador num formato 3:2 (1:50) emprestado da fotografia; seja na montagem pausada de Agnieszka Glinska (Cordeiro; EO), na direção artística atenta aos pormenores de Ristergren Albistur Lisette e Ewa Mroczkowska, ou no guião de Line Langebek Knudsen e do próprio von Horn.”

Uma curiosidade – e alguns registros obrigatórios.
Lá pela segunda metade do filme, Dagmar diz que ela e Karoline precisam de um descanso, uma diversão – e vão ao cinema. Vemos as duas na platéia, vemos a tela – não deu para identificar o filme que estava passando, e o IMDb não faz o registro, ao contrário do que é o usual. Mas há algo bem interessante e estranho: enquanto está lá rolando o filme, ouve-se na sala de cinema uma música cantada em português, e em português brasileiro!
Os créditos finais registram: é “Sublime Provação”, de Eduardo Souto. Pianista, maestro, compositor, Eduardo Souto, nascido em São Vicente, São Paulo, em 1882, morto no Rio de Janeiro, em 1942, foi criador de valsas, tangos, sambas e marchas carnavalescas.
O fato de tocar “Sublime Provação” durante a exibição de um filme em Copenhagen em 1919, 1920, é de fato estranho, já que o cinema era mudo, e em geral os filmes eram apresentados com o acompanhamento de um conjunto ou uma orquestra tocando ao vivo uma trilha que tivesse a ver com a narrativa. Tudo bem: aquela sala de cinema poderia tocar discos enquanto exibia os filmes. Só que “Sublime Provocação” foi composta em 1929.
Os registros.
Magnus von Horn é sueco de Gotemburgo, classe 1983. Este A Garota da Agulha é seu oitavo título como diretor, mas apenas seu terceiro longa-metragem, depois de Efterskalv (2015) e Sweat (2020), citado pelo crítico português. Os demais títulos são de curtas e uma série de TV.
Poucos títulos, mas muitos prêmios. Seus filmes já ganharam 29 prêmios e 45 indicações.
A Garota da Agulha é o terceiro filme de Trine Dyrholm, a fantástica atriz que interpreta Dagmar, a ser indicado ao Oscar de melhor filme internacional/de língua estrangeira. Ele esteve também em Em um Mundo Melhor (2010), aquela maravilha de Susanne Bier, e em O Amante da Rainha (2012), de Nikolaj Arcel, uma mistura de um pouco de conto de fadas com muito de tragédia shakespeariana.
Como diria o Obelix, batendo os nós dos dedos da mão direita na cabeça, esses nórdicos são uns neuróticos – mas, diabo, são também talentosos pra cacete.
Anotação em fevereiro de 2025
A Garota da Agulha/Pigen med Nålen
De Magnus von Horn, Dinamarca-Suécia-Polônia, 2024
Com Vic Carmen Sonne (Karoline),
Trine Dyrholm (Dagmar),
Besir Zeciri (Peter, o marido de Karoline), Ava Knox Martin (Erena, a garota que Dagmar cria como filha), Joachim Fjelstrup (Jørgen, o diretor da tecelegam), Tessa Hoder (Frida), Ari Alexander (Svendsen), Per Thiim Thim (Olaf Jensen, o locador do primeiro apartamento), Søren Sætter-Lassen (mestre do anel), Dan Jakobsen (Claude, anão), Anna Tulestedt (a velha locadora do segundo apartamento), Thomas Kirk (contramestre), Benedikte Hansen (a mãe de Jørgen), Peter Secher Schmidt (promotor), Agnieszka Przyborowska-Mitrosz (Nancy, a mulher barbada), Cordelia Majgaard (jovem empregada)
Roteiro Line Langebek Knudsen, Magnus von Horn
Fotografia Michal Dymek
Música Frederikke Hoffmeier
Montagem Agnieszka Glinska
Casting Tanja Grunwald
Desenho de produção Jagna Dobesz
Figurinos Malgorzata Fudala, Zuzanna Kot
Produção Malene Blenkov, Mariusz Wlodarski, Nordisk Film Production, Creative Alliance, Lava Films, Nordisk Film Production,
Film i Väst, EC1 Lódz – Miasto Kultury, Lower Silesia Film Centre,
Danmarks Radio (DR), Sveriges Television (SVT), Det Danske Filminstitut, Polski Instytut Sztuki Filmowej. Svenska Filminstitutet (SFI),
Eurimages.
P&B, 123 min (2h03)
Fonte: 50 anos de filmes

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.
