Marinando meus sentidos em profunda imersão na sonoplastia da chuva e suas variações temáticas e olfativas, me vejo anoitecido entre corujas, sapos e o rosnar de cães assustados com o invisível que se aproxima sorrateiro e incorpóreo, trazidos por correntes de ar que parecem ter carimbo de correio com remetente e destinatário, apesar de desconhecidos, CEP e CPF.
Me fez lembrar uma viagem à Índia, onde escolhi como destino, para fugir ou me esconder, de dores muito dolorosas e lembranças kriptonianas, se é que me entendem.
Somos feitos de pura ilusão. Cremos em fórmulas e manuais que nos contaram ou lemos em dado momento, mas, na hora da vida real, caímos num vazio onde o fundo, nem do outro lado do mundo, está.
Atravessava uma recente tempestade causada por uma repentina separação, para mim, claro, quando, inesperadamente, numa fila de queijo, dentro de um mercado Zona Sul, me vi diante de um remédio desses prescritos em bulas e receitas de curas rápidas ou uma panaceia para dor de corno, cotovelo ou o que quer que se chame, para aliviar a sensação de um maior abandonado. Uma figura altiva, sedutora, clara como a luz do dia e olhos azuis da cor do mar, penetrantes como punhal de malandro em noite de lua cheia. Um olhar, entre outro olhar, um sorriso de quem quer sem dizer o que quer, um dedo afogado num queijo meloso e… a imaginação, foi ao oriente, sem volta.
Aeroporto em poucos dias com tudo reservado, roteiros turísticos e religiosos, hotéis e, o imponderável, imensurável, o inesperado das surpresas a vir, palpitavam meu coração e minha libido, em toda sua extensão e significado.
Entre o queijo e a chegada em Deli, não se passaram 10 dias. Já ou ainda, no avião, a eleita, esbelta e estonteante, começou a me nausear com seguidas reclamações e queixas sobre a lotação da aeronave, o atendimento e, principalmente, a frequência. Percebi, ali, que estava em alto mar cruzando um oceano e que não teria mais como descer em algum porto e regressar. Procurei no fundo da alma me encher de esperança e me convenci que foi só um momento passageiro.
Escala em Londres, após doze horas de viagem. Passaríamos tempo suficiente para uma pequena incursão pela big city. Fomos ao metrô comprar bilhetes.
Eu queria conhecer as famosas lojas de disco, Virgin.
Bem, até chegar aí, tivemos que vencer o sotaque do bilheteiro que ao questionarmos onde embarcaríamos no trem, ele rosnava algo incompreensível para meus ouvidos.
Somente conseguia focar em seus lábios que ao movimentar, faziam suas grandes e vermelhas bochechas dançaram como um trôpego em fim de baile.
Já desistindo, minha musa se dispôs a decifrar aquele dialeto. Os observei à distância e pude, de outro ângulo, reparar no movimento frenético de sua cara de cão, babando e mais ainda, avermelhado, quase que tomado por uma cólera assassina. Como bom ariano, não me dei por vencido e, novamente, trocamos a guarda e lá me fui a decifrar tamanho enigma. Quando chego no balcão, ele já me olhou com cara de pouco amigo e, sem eu perguntar, repetiu seguidamente com disparos de saliva voadora, “platiforforplatiforforplatiforfor”. Putz! Claro! Plataforma 4;
Me tomei de orgulho, ingressei (amos) no trem e em poucos minutos estávamos dentro do paraíso da musica.
No dia seguinte chegamos ao nosso destino desejado: Índia!
Saindo do banheiro do aeroporto, a minha musa deu o segundo enguiço, reclamou da higiene dos sanitários, da bagunça no despacho das malas e, ao entrar no táxi, ou algo parecido com um, disse em alto e bom som que era o lugar mais horrível que havia visto na vida.
Até aqui, não revelei que o trajeto, as paradas e tudo o mais, foi escolhido por ela e pago por mim. Vamos em frente!
Todos os hotéis que ficaríamos eram five stars, lá, não há meio termo.
Na primeira noite, chamou o gerente para que nos trocasse de quarto, posto que este, cheirava a mofo. Vontade feita, mudamos com tudo. Deitados após banho e refeição, que também fora motivo de queixa, pensei que ali, começaria um sonho ou ao menos, eu iniciaria a minha “Fuga de Alcatraz”. Lembram o motivo da viagem?
Aquela mulher linda ao meu lado, naquela cama king size, minha imaginação entrou num profundo trabalho de desnudar aquele corpo e vislumbrar toda sua forma por debaixo daquela roupa e, de um roteiro noir, a cena ficou trash .
De repente, não mais que de repente, surge uma espécie de inseto, típico do local, se movendo cheia de pernas ágeis e que brilhavam no escuro. A musa ecoa um grito que até hoje tenho de tratar, não só meus tímpanos como também, meus nervos.
Um corre corre entre os funcionários do hotel que não compreendiam o que havia de assustador naquele inseto. Após todo o furdúncio que culminou com a retirada daquele infortunado bichinho, me restou uma noite em claro, o corpo dormente, causado por uma cabeça e um esqueleto em carne e pele de lobo, esparramado como rama de batatinha sobre minha carcaça e uma profunda sensação de frustração e angústia.
Despertamos e iniciamos os roteiros religiosos eleitos pela doce musa. Esperava, ela, encontrar numa divindade, o seu “eu” divino, sua essência. Entre deuses e divindades, templos e rezas… tapas e… caneladas.
Se eu quisesse ir para sul, ela rumava o norte. Se era pra tomar sopa, ela achava uma mosca para devolver o prato. Se eu calasse, ela ligava o motor. Nunca tinha visto um espírito de porco como ela.
Resolvi alugar um carro com motorista. Este, já no fim do primeiro dia me disse que uma viagem poderia nos fazer reconectarmos, que,após tantos anos de casados, era natural tanta tensão. Ao saber que nos conhecíamos há poucos dias e que vínhamos de tão longe, ele sussurrou: Crazy people!!!
Já no quinto dia de viagem, após visitarmos o Taj Mahal, eu já cogitava voltar ao Brasil. Não contei a vocês que a viagem fora programada para trinta dias, percorrendo a índia de norte a sul.
Conversamos e decidimos continuar, afinal, tanto desgaste e dinheiro investido num sonho, não dava para desistir.
Passamos a deixar os deslocamentos de carro e trem, para fazermos de avião, afinal, cada minuto de carro por lá, flertamos com a morte. Nunca vi um trânsito enlouquecido como o deles. Tenho dificuldades para relatar como seja, de fato.
Numa manhã, depois do café, eu, já cansado de visitas a templos e orações incompreensíveis, de banhos de rio com cadáveres a navegar ao meu lado, disse para minha musa que gostaria de fazer algo mais ecológico e esportivo.
Sugeri uma subida as montanhas, já ao norte e uma descida de caiaque passando por praias de nudismo.
Ganhei uma bicuda na canela de fazer inveja a qualquer zagueiro zagueiro.
Não revidei, dei as costas, preparei o meu roteiro e me fui.
Foi meu melhor dia até então. Lindas paisagens, um rio fantástico com corredeiras cheias de aventura e muita conversa com gringos from every where.
Parávamos nas praias para nos esquentarmos e apreciar figuras que pareciam ter saído de alguma nave extra terrestre com adereços e alegorias de matar um carnavalesco de inveja.
Fim do dia ao regressar, pedi a gerência que me relocasse num outro quarto. Sem entender, ele pergunta se a minha senhora gostaria de escolher a nova acomodação.
Ao ver que a intenção era outra, pigarreou e partiu meio sem jeito. Passado alguns minutos a musa bate á porta da minha nova moradia e diz que nunca havia sido tão humilhada e para não perder tempo, um novo bate boca.
Aproveitei o ensejo para comunicar que a partir daquele dia, faríamos roteiros independentes e, que eu, abreviaria o tempo da viagem.
Como eu havia marcado e comprado todo o pacote, ela, se quisesse seguir, teria de refazer tudo com alto custo, então, sem opção, teve de aceitar.
Fui á agência e pedi para remarcar a data e, sobretudo, os lugares. Exigi que um ficasse o mais distante possível do outro. Assim foi feito.
No dia da saída no último hotel que pousamos, ela foi num táxi e eu, em outro. Foram mais de 30 horas de voo sem nos falarmos. Ao chegar, descemos como dois estranhos e partimos como nunca houvéssemos nos visto.
Não preciso dizer que não trocamos em momento algum da viagem, um beijo se quer, muito menos, da fruta, experimentei.
Este caso se deu no século passado, há dois anos do seu fim.
De lá pra cá, nunca mais nos falamos ou nos vimos.
Passados quase vinte anos, entro num restaurante e a vejo sentada ao fundo, só. Me detive.
Minha primeira reação foi dar meia volta, mas, ela foi mais rápida e me acenou com um lindo sorriso emoldurado por seus belos olhos azuis da cor do mar.
Levantou suavemente sua taça de vinho, num tácito convite a um brinde.
Não pude escapar, entre a curiosidade e as más lembranças, de novo, a libido saiu na frente.
Me sentei e começamos a conversar como se fosse um fato corriqueiro em nossas rotinas. Me contou sucintamente sua vida, sua carreira de jornalista e de seus planos futuros. Falei da minha vida, do que estava fazendo e, em dado momento, me interrompe e me assalta com uma única frase:
Vamos combinar de você passar na minha casa para vermos as fotos da nossa viagem…???!!!
Fechem as cortinas, por favor.
Paisagista bailarino e amante da natureza. Carioca da gema, botafoguense antes do Big Bang.