Alguém abençoado pela criatividade, pelo senso de oportunidade e pelo conforto da compreensão do espírito dos baianos de Salvador, biológicos ou adotados, traduziu com leveza e humor o nosso jeito de corpo e voz de tratar as visitas. “Oxe, já vai?”. Experimentado sob um temporal numa manhã de outono, enquanto se leva as visitas bambuzal do aeroporto adentro, para a volta para a casa em outros cantos do país ou do mundo, o sabor dessa evocação publicitária aos turistas remete quase a uma gargalhada para dentro, movida pelo prazer de se saber pertencente a um povo, um tempo, uma cultura, uma história e uma geografia traduzíveis por três palavras.
(Foto: Reprodução)
Num outdoor, a evidência de que a língua falada em Salvador não é exatamente a portuguesa. Ok, toda cidade, todo lugar, tem seus códigos específicos de linguagem. Mas vamos combinar, em Salvador temos um dialeto amplíssimo, pouco penetrável por quem chegou ontem. Comer água, comer reggae ou cair matando é a cara da gente, gargalhando sobre a gramática oficial, com lente de contato nos dentes ou banguela.
Solidão
Num dos livros mais bonitos sobre Salvador, Uma História da Cidade da Bahia, escrito pelo antropólogo Antônio Risério e publicado como obra de arte pelo então governo do estado quando Salvador comemorou 450 anos, há uma explicação linda para essa nossa condição de sermos como somos, essa cidade com um signo identitário tão marcado a ferro e fogo literais, graças à matriz africana que nos moldou para além dos altares europeus e da naturalidade tropical indígena. Com a vinda da Família Real portuguesa em fuga para o Brasil, e a decisão de retirar de Salvador o status de capital da Colônia, nos atiraram então ao esquecimento, como Risério explica como sendo “os 100 anos de solidão da Bahia”.
E só para não gerar reducionismos ou generalismos na interpretação, lembremos que, dentro das fronteiras do baianês, durante muito tempo e ainda para alguns, Bahia é sinônimo de Salvador. Sim, é muito justo que o semiárido, o sertão, o sul e as outras bahias contidas no mapa geopolítico do estado não vejam muita graça no estabelecimento desse sinônimo. Nada mais bonito sob o olhar histórico que os fluxos e refluxos de solidão que parecem ser a não apenas condição estruturante da construção da personalidade de Salvador, mas também uma espécie de sina trágica que nos molda.
Hi-lo
Ao nos tirar o status de capital e transferi-lo para o Rio, os portugueses pareciam ter nos condenado ao esquecimento. Ao vermos nos textos culturais sobre o último verão de Salvador tão frequentemente palavras como renascimento e até redescoberta ou redenção (da cidade), histórica e quase melancolicamente somos remetidos aos 50 anos de abandono do qual fomos vítimas após o descobrimento e aos quase 100 impostos pelos portugueses que preferiram o Rio. Sim, entre o que chamamos de decadência do axé ou do Carnaval de Salvador, da forma como os vimos florescer na década de 80, e o renascimento em 2019, muito há do mesmo tipo de fermento que sempre está presente nesses refluxos de nossa solidão histórica.
Quando perdemos a sede do governo real, ficamos décadas e décadas esquecidos. Ninguém nos visitava. Uma espécie de família culturalmente e geograficamente isolada, que não vê as coisas dos outros, os hábitos dos outros, as novidades do mundo. Podíamos ter nos tornado um povo taciturno, triste, de quadris duros e anorgásmico. Mas não é que um século de solidão nos deu tudo o que somos agora, adolescentes de 470 anos (Londres tem mais de 2 mil anos, Paris é tão velha que uns lhe atribuem 6 mil anos e alguns mais que isso e Roma tem 4 mil anos)? Ficamos tanto tempo sozinhos que nossa cultura empedrou dentro de nós e se tornou inquebrável. Quando a redescobriram, Salvador tinha dado um zignáu e, toda “hi-lo” estava deslumbrante no centro de um samba de roda. Forasteiros lhe saúdam até hoje, entre um “Salvador, sua linda” e um “digaí, sumida”. Nós nos sabemos e renascemos num assombro de cores, ritmos e sabores todos os dias.
Fonte: Correio24horas
Usamos cookies em nosso site para oferecer a você a experiência mais relevante, lembrando suas preferências e visitas repetidas. Ao clicar em “Aceitar tudo”, você concorda com o uso de TODOS os cookies. No entanto, você pode visitar "Configurações de cookies" para fornecer um consentimento controlado.
This website uses cookies to improve your experience while you navigate through the website. Out of these, the cookies that are categorized as necessary are stored on your browser as they are essential for the working of basic functionalities of the website. We also use third-party cookies that help us analyze and understand how you use this website. These cookies will be stored in your browser only with your consent. You also have the option to opt-out of these cookies. But opting out of some of these cookies may affect your browsing experience.
Necessary cookies are absolutely essential for the website to function properly. These cookies ensure basic functionalities and security features of the website, anonymously.
Cookie
Duração
Descrição
cookielawinfo-checkbox-analytics
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Analytics".
cookielawinfo-checkbox-functional
11 months
The cookie is set by GDPR cookie consent to record the user consent for the cookies in the category "Functional".
cookielawinfo-checkbox-necessary
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookies is used to store the user consent for the cookies in the category "Necessary".
cookielawinfo-checkbox-others
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Other.
cookielawinfo-checkbox-performance
11 months
This cookie is set by GDPR Cookie Consent plugin. The cookie is used to store the user consent for the cookies in the category "Performance".
viewed_cookie_policy
11 months
The cookie is set by the GDPR Cookie Consent plugin and is used to store whether or not user has consented to the use of cookies. It does not store any personal data.
Functional cookies help to perform certain functionalities like sharing the content of the website on social media platforms, collect feedbacks, and other third-party features.
Performance cookies are used to understand and analyze the key performance indexes of the website which helps in delivering a better user experience for the visitors.
Analytical cookies are used to understand how visitors interact with the website. These cookies help provide information on metrics the number of visitors, bounce rate, traffic source, etc.
Advertisement cookies are used to provide visitors with relevant ads and marketing campaigns. These cookies track visitors across websites and collect information to provide customized ads.