13 de outubro de 2024
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Para não dizer que não falei dos caminhoneiros

Foto: Arquivo Google – Brasil247

Se você nunca leu “Ensaio sobre a cegueira”, do português e Nobel de Literatura José Saramago, nem viu o filme homônimo, do cineasta brasileiro Fernando Meirelles, leia e veja, ontem. E mesmo que faça as duas coisas ou apenas uma delas só após o fim da greve dos caminhoneiros, vai ver a melhor tradução do que são cidades em colapso, do que é o mundo em que falta tudo e o caos sai das profundezas da sociedade, e de cada um de nós, quando o essencial deixa de existir.
Quando a realidade nos carrega para um cenário próximo de “Mad Max”, nem vem que não tem com essas frases de efeito ou blasé, mesmo que elas tenham sido ditas por gente do quilate de Oscar Wilde: “Dê-me o supérfluo que eu abro mão do essencial”. Na vida real desses dias brasileiros de maio de 2018, não é assim que a estrada toca e que a vida tropeça no caos gerado pela ausência do essencial. E quem diria que, cinquenta anos depois de Maio de 68, quando o tom da resistência era dado pela elite cultural, política e intelectual, todos inebriados de pura ideologia e ares de contracultura, sejam agora, em 2018, os caminhoneiros – essa categoria social que parecia só fazer parte da pauta e do repertório de Sula Miranda e Roberto Carlos – os revolucionários brasileiros.
RODINHAS
Embora o governo tenha optado por dar meia-volta, parar de acusar os caminhoneiros e direcionar a artilharia para os empresários, os donos das transportadoras, acusando-os de locaute, a gente sabe fazer conta. Que pode haver um tanto de locaute, ninguém duvida. Mas como explicar todo o impacto dessa greve pelo viés apenas do locaute, se pelo menos 40% de todos os caminhoneiros brasileiros são autônomos e, obviamente, não têm patrões e nem precisam seguir as ordens dos empresários?
O fato é que nem a visita noturna, clandestina e gravada de Joesley Batista ao Jaburu de Michel Temer e nem Rodrigo Rocha Loures dando aquela corridinha com uma mala de rodinha abarrotada de dinheiro asfixiou tanto o presidente da República. Já não é segredo que circula em todos os setores políticos brasileiros a sentença: ou Temer demite Pedro Parente, o presidente da Petrobras, ou ele mesmo, o chefe do Executivo, cairá. Não é preciso nenhum jogo de adivinhação. Basta olhar para o país desabastecido de tudo e ver como será o dia de hoje, essa segunda-feira blecaute, o 8º dia de greve dos caminhoneiros.
IDADE MÉDIA
Sobre a ameaça de Temer, que é sempre a mesma, a de implantar uma intervenção militar, os caminhoneiros já estão se organizando nos grupos de WhatsApp, até onde se sabe, à revelia de patrões, dos políticos e até dos negociadores oficiais. Entre si, anunciam: se o Exército chegar, coloca-se a chave na ignição do caminhão, desce, senta-se no chão, colocam-se as duas mãos sobre a cabeça, num gesto coletivo de rendição e as tropas façam o que quiserem dos caminhões. E, ironia das ironias.
Com o anúncio de greve pelos petroleiros, corre-se o risco de o Exército ser tão malsucedido nas estradas como tem sido na guerra ao tráfico no Rio de Janeiro. Ou seja, se os petroleiros cruzarem os braços, e como já não há combustível nos postos, vai faltar diesel para os homens do Exército cruzarem o país dirigindo os caminhões dos grevistas para entregar a carga. A não ser que se faça uma meta-viagem: usem o combustível que carregam para abastecer o próprio veículo que a carrega. Mas essas cargas também vão acabar. Ouvido pela imprensa sobre a decisão do governo de usar o Exército para acabar com a greve, o ministro aposentado Ayres Britto foi cirúrgico: em plena idade mídia, em que a paralisação é articulada e mantida pela tecnologia em grupos de WhatsApp, o governo quer usar tropas do Exército, uma estratégia da Idade Média.
MORRER GENTE
Se o país continuar a partir de hoje sob esse processo de desabastecimento, não será só o governo que estará sob asfixia. Como, lá atrás, o atraso, a ambição e a corrupção da classe política brasileira se associaram às montadoras e às construtoras para que um país das dimensões do Brasil dependesse quase que exclusivamente do transporte rodoviário, agora a fatura chegou. Aos críticos do governo que querem mais é que ele morra asfixiado, é bom lembrar que a coisa ficou mais séria do que se imagina. Quem vai começar a morrer é o cidadão comum, impedido de respirar nos hospitais, pois, por mais surreal que possa parecer, é assim: o oxigênio do qual dependem os hospitais para seus pacientes só chega pela estrada, trazido pelos caminhoneiros. Ensaio sobre a cegueira nunca foi tanto um ensaio sobre o Brasil.

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