16 de abril de 2024
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A exilada

Sentir calor no Hemisfério Norte tem gosto de traição amorosa. É uma espécie de dor de corno meteorológica. Como, quarenta graus? Eu não estou na Europa? Sim, estou, e o termômetro quase explode. Bem, o jeito é encarar.
Fresca que sou, dei-me ao desfrute de, apenas dois anos e seis meses após abandonar a canícula carioca, ter um piripaque com o sol excessivo. Após algumas horas andando na rua, voltei para casa amparada pelo solícito motorista de um Uber, que tentava acalmar meu faniquito jurando por todos os deuses que, na próxima quinta-feira, a cidade voltará a seus 21 graus habituais. O problema é eu sobreviver daqui até lá. Acreditem, com os 34 graus de ontem, tive início de insolação. Cheguei em casa mole, enjoada e com calafrios. Assumo a crise de peruagem, já enfrentei calores piores. Mas amo o bem-bom das temperaturas civilizadas. Conforto é ótimo e vicia.
E conforto é tudo que o meu Porto me oferece, adoro viver nesta cidade. Até para perguntar sobre os inacreditáveis acontecimentos brasileiros, as pessoas são amáveis. Abordam delicadamente a minha ferida. A verdade é que ainda não consigo esquecer que estou bem, mas os meus amigos, a minha pouca família, permanecem enfiados no lamaçal.

Dei-me ao trabalho de verificar os assuntos que impressionaram os portugueses nos últimos dias. Ao menos, foram os que mais me perguntaram. Ficava sem saber o que falar quando questionada sobre a integridade ética do nosso Supremo Tribunal Federal, que, parece, é habitado por seres de outras dimensões, com etéreas noções de realidade e justiça. As palavras sumiam de minha boca quando indagavam sobre o neném que, ainda no ventre materno, levou um tiro que o deixou paraplégico.
Num país onde a medicina socializada é simples, ágil e excelente – sou testemunha ao vivo e em cores – não há como explicar que uma criança, com seguro de saúde particular e caríssimo, morreu porque a médica enviada para socorrê-lo simplesmente decidiu que não estava disposta a fazê-lo, seu horário de plantão terminara.
Ontem, com a notícia de que, entre 2010 e 2016, Sérgio Cabral recebeu um “prêmio” das empresas de transportes públicos a cada vez que reajustava a tarifa, agradeci a Deus a minha insolação fake. Fui poupada de tentar decifrar mais um episódio grotesco, acintoso.
Sinto-me o avesso do último exilado, a personagem de Jô Soares: quem não quer voltar nunca mais sou eu.

O Boletim

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