18 de abril de 2024
Sergio Vaz

Hollywood jamais agradou aos conservadores

Todo filme sempre foi político, cada Oscar é político. Por Sérgio Vaz
Simpatizantes de Donald Trump – os que admitem abertamente, e também os mais envergonhados – vão seguramente dizer, como já começaram a dizer tão logo foi encerrada a 89ª festa de entrega dos Oscars, na madrugada desta segunda-feira, que Hollywood resolveu fazer discursos, comícios, em vez de show, e por isso deu aquele vexame histórico, nunca visto antes.
E é preciso admitir que, ao protagonizar aquela trapalhada grotesca, anunciando que o maior prêmio de todos, o de melhor filme, ia para La La Land, quando na verdade o vencedor era Moonlight, o casal Bonnie & Clyde empanou o brilho de uma festa que até ali estava gostosa, divertida, bem ensaiada, bem encenada, ágil – e contundente nas críticas ao presidente que tem atacado com virulência alguns dos alicerces básicos do sistema democrático, a começar pela imprensa livre.

A besteira cometida pela Bonnie do marcante filme de Arthur Penn que está comemorando meio século, Faye Dunaway, que mal olhou o cartão que Clyde, ou melhor, Warren Beatty, segurava, e disse apressadamente La La Land, sem dúvida deu munição para as críticas de trumpistas – os assumidos e os meio ou totalmente envergonhados –, assim como para os conservadores de todos os matizes. Todos eles ganharam um argumento para reclamar do tom político da cerimônia deste ano, de Hollywood, e de, maneira ampla, geral e irrestrita, de qualquer tipo de manifestação que vá contra seus próprios valores.
Deu corda ao discurso tipo “esse povo tem é que fazer show e só, e pronto, não tem nada que ficar dando opinião sobre política”.
O discurso tipo “arte não tem nada a ver com política”.
O discurso tipo “artista tem que ser só artista, não tem que falar de política”.
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Uma discussão mais velha que andar pra frente – embora haja tanta gente que insiste em que devemos caminhar para trás.
Parece que ultimamente eles estão mais numerosos, ou no mínimo menos silenciosos – ou as duas coisas, credo em cruz, vade retro, satanás.
Arte é política. Qualquer canção, cada pequeno conto de 3 páginas, cada movimento de um dançarino em um palco é afirmação política.
O que dirá um filme. O cinema é a arte mais coletiva que existe. Quem falou que cinema é uma câmara na mão e uma ideia na cabeça é um poeta em momento de profundo devaneio. Cinema é indústria – mesmo o filme mais barato que há, como o próprio Moonlight, o vencedor do principal Oscar 2017, custou pouquíssimo mas envolveu dezenas e dezenas de profissionais.
Hollywood sempre foi política. Hollywood foi construída pelos empresários mais visionários de sua época, muitos deles judeus de diversas origens, e pelos artistas e artesãos mais talentosos, mais competentes, mais ousados, vindos de todas as partes do mundo, que tinham como denominador comum o gosto pela liberdade, pelo avanço dos costumes, pela não eternização dos mesmos dogmas que moldavam a sociedade conservadora, careta, retrógrada.
Hollywood sempre esteve muito à frente dos modos e dos comportamentos aprovados pela maioria conservadora, a que se dizia silenciosa, e nos últimos anos tem falado pelos cotovelos.
Sempre foi vanguarda, vários passos muito adiante que a maioria.
Frankly, my dear, Hollywood never gave a damn para os conservadores, os retrógrados, os caretas.
Para cada republicano ferrenho tipo John Wayne sempre houve dúzias de democratas muito mais para George McGovern do que para John Connally, ou, se o exemplo parece muito antigo, muito mais para Barry Sanders do que para Hillary Clinton.
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Cinema é política, Hollywood é política, e é uma antiga tradição haver manifestações políticas nas cerimônias de entrega dos prêmios da Academia.
Os trumpistas que reclamam que a deste ano foi “comício” ou têm Alzheimer ou são portadores de ignorância congênita ou profunda má-fé, porque o Oscar sempre foi político.
Em 1973, Marlon Brando mandou uma atriz fantasiada de índia para recusar em nome dele o Oscar de melhor ator por The Godfather, e ler uma carta em que ele reclamava da forma como o cinema tratava os índios. Ah, perdão, os nativos-americanos.
Em 1978 (creio), Vanessa Redgrave, tão vermelha quanto indica o início de seu sobrenome nobre, de uma das maiores linhagens de atores do mundo, denunciou os “delinquentes sionistas”.
Em 1990, a loura Kim Bassinger reclamou da ausência de Faça a Coisa Certa, do supremacista negro Spike Lee, entre os candidatos ao Oscar de melhor filme.
Em quase todas as festas dos primeiros anos 2000 houve algum tipo de discurso contra George W. Bush e sua guerra ao Iraque justificada por ele pelas armas de destruição em massa que jamais foram encontradas.
Em 2003 teve o discurso de Michael Moore, essa espécie de Guilherme Boulos do documentarismo americano.
E não faz nem dois que Patricia Arquette aproveitou-se do palanque do Oscar para exigir salários iguais aos dos homens para as mulheres da indústria.
E no ano passado teve toda a onda de reclamações contra o #OscarSoWhite.
(Para registrar esses vários tipos de politização da festa do Oscar, me servi não apenas da memória, mas de um texto de Stephen Silver no Screen Rent, “The Case for Politics at the Oscars”. É um belo texto, que deve ser lido por quem tem interesse pelo assunto.)
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E o fato é que, como dizia o Chico Buarque, a respeito de uma outra, é claro, “foi bonita a festa, pá”.
Aquele número inicial do Justin Timberlake chegando por trás do Dolby Theatre, pela entrada do público, e fazendo todo o povo ficar de pé e mexer os ossos, foi uma delícia. O discurso inicial, logo a seguir, do apresentador da noite, o ótimo Jimmy Kimmel, foi um absoluto brilho.
Ao enfatizar o termo “overrated”, supervalorizada, que Donald Trump usou para tentar desqualificar Meryl Streep, no dia seguinte ao belo discurso dela na cerimônia do Globo de Ouro, Jimmy Kimmel criou um dos momentos mais emocionantes da história do Oscar, na minha opinião: todos os presentes ao Dolby Theatre se puseram de pé, não apenas para reverenciar uma das melhores atrizes da História do cinema, 3 Oscars, fora outras 17 indicações, 166 prêmios de uma maneira geral, fora outras 366 indicações, mas para se solidarizar com uma profissional esplêndida que havia sido agredida nominalmente pelo presidente da República.
Jimmy Kimmel foi um ótimo apresentador. A coisa de chover docinhos sobre a platéia foi um belo achado. Foi emocionante a colocação de um profissional dizendo por que, ainda bem jovem, admirou um mais veterano (Charlize Theron tietando Shirley MacLaine, Javier Bardem babando por Meryl Streep, Seth Rogen se deliciando com Michael J. Fox), e depois aprendiz e mestre entrando juntos no palco, foi emocionante.
Toda a sacada – pela primeira vez, numa coisa que já estava na sua 89ª edição – de apresentar cenas antigas dos atores recebendo prêmios, antes da entrega a cada um dos quatro, é do mais absoluto brilho. Por quatro vezes, vimos clipes que nos trouxeram a memória anos, décadas, eras de belo cinema. Emocionante, lindo, maravilhoso.
Que perfeição a apresentação das duas músicas de La La Land que concorriam ao prêmio de melhor canção.
Que delícia a coisa de Jimmy Kimmel ficar pegando no pé de Matt Damon o tempo todo.

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Deliciosa a declaração do grande Gael García Bernal, ator excelente, pequenino ao lado da atriz Hailee Steinfeld, que dividiu o palco com ele: “Como um mexicano, como um trabalhador migrante, como um ser humano, sou contra todas as formas de muros que nos separam”.
Que beleza, que maravilha a carta assinada por Asghar Farhadi, diante do seu segundo Oscar de melhor filme estrangeiro, lida pela engenheira iraniana radicada nos Estados Unidos Anousheh Ansari.
Que grandeza.
Vi no Facebook gente que ironizava o fato de um iraniano estar falando de democracia para um americano.
Como se não pudesse.
O Irã é uma porcaria de uma ditadura teocrática, uma das piores que há no mundo. E os Estados Unidos são de fato a mais poderosa democracia liberal do planeta.
Mas Asghar Farhadi pode falar o que ele bem entender para Donald Trump. Asghar Farhadi é um dos melhores cineastas de todos os tempos, e Donald Trump é com toda absoluta certeza o pior de todos os presidentes que os Estados Unidos já tiveram em 241 anos de democracia. Donald Trump é um narcisista doentio, uma pessoa despreparada para o cargo, que põe em risco a humanidade.
O cinema tem todo o direito de fazer comício contra ele.
Na verdade, o dever.

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