19 de março de 2024
Ligia Cruz

Mais uma vez, outra vez, de novo

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Alheia a uma realidade que não seja de medo, humilhação, pavor e abandono; assim vive a jovem que foi presa em uma cela masculina de delegacia com cerca de 30 homens, durante 26 dias, em Abaetuba, no Pará, há nove anos.
Ela tinha apenas 15 anos quando isso aconteceu. Seu crime foi o furto de um celular na casa onde trabalhava. Agredida por policiais, presa e condenada, mais do que a pena em si, tornou-se “a garota” dos presidiários com quem dividia a cela. Sofreu estupro e violência diários e certamente coleciona histórias que jamais poderia contar, porque não se traduzem em palavras sentimentos de uma pessoa torturada.
O caso veio à baila novamente porque finalmente o Conselho Nacional de Justiça puniu a juíza Clarice Maria Andrada com o afastamento de dois anos de suas funções. Só dois anos pela negligência de destruir uma vida. Causa asco a sua frieza no acompanhamento do caso, por não se informar sobre a idade e as condições do local em que a adolescente foi apreendida. A menina só saiu de sua agonia porque um dos presidiários foi solto e acionou o Conselho Tutelar. Somente duas semanas depois disso a senhora meritíssima pediu a transferência dela para local apropriado.
Hoje, com 24, ela vive em uma cidade não revelada do Sul do país, viciada em crack, maltratada e entregue à própria sorte, completamente abandonada pelo Estado. Uma voluntária diz que ela recebe dois salários mínimos há apenas dois anos, a título de indenização. De quanto é o soldo da tal juíza? Há uma quantia ainda prevista que ela não recebeu. Só que o que ela viveu não se apaga e nem se paga. É só mais uma mulher vítima de violência e estupro no Brasil.
Repetidamente casos de crimes de gênero têm sido denunciados e chegam à mídia com números estarrecedores e sempre com reação e chacota. Quem não se lembra do caso da jovem que foi violentada por cerca de 30 (?) homens no Rio, em agosto passado? Ao escrever sobre o tema em rede social fui severamente admoestada por homens e algumas mulheres que questionavam a veracidade do estupro coletivo porque “a garota estava acostumada a participar de orgias”. Postaram imagens de adolescentes em posições lascivas em público, em bailes funk, com a ressalva de que “elas pedem” e mais o lembrete: “lembra-se da escola de base?”.
Por incrível que pareça no país a cultura do macho prevalece sobre o direito. A mulher é sempre “de alguém”, do pai, do marido, do avô, não dela própria. Mesmo nas famílias com frequência se levanta a voz contra uma mulher, raras vezes com um homem. O achatamento moral feminino está no cerne da educação brasileira e provavelmente de muitos países.
O que dizer dos números da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) sobre o abuso sexual de mulheres nos vagões? No primeiro trimestre deste ano a violação sexual aumentou em 62% no sistema ferroviário só na capital paulista – excluem-se na estatística os dados da Região Metropolitana e o silêncio de muitas mulheres.
Nesta semana um vídeo amador feito em um bar mostra um homem agredindo violentamente uma jovem sem a interferência de ninguém. A apuração do caso deu conta de que havia pelo menos dez queixas de violência feitas por ela em delegacia contra o mesmo homem, o companheiro. Se ela é frequentemente espancada, óbvio que foi violada também. Entrou para o Programa de Proteção do Estado porque chegou à mídia, senão entraria para a estatística de vítimas fatais como muitas.
Nesta mesma semana foi revelado que a cada 11 minutos e 33 segundos um estupro acontece no país. Pelo Ligue 180, Central de Atendimento à Mulher, 67.962 casos de violência foram registrados no primeiro semestre de 2016. Entre esses relatos, 51,06% correspondem à violência física; 31,10%, violência psicológica; 6,51%, violência moral; 4,86%, cárcere privado; 4,30%, violência sexual; 1,93%, violência patrimonial; e 0,24%, tráfico de pessoas. O fato é que os crimes de gênero são mais comuns do que se imagina e boa parte das mulheres, por medo, não faz denúncia.
Nos rincões do país os índices do 10º Anuário Brasileiro da Segurança Pública são chocantes. O Acre tem participação de 65,2% por 100 mil habitantes. E em menor escala o Espírito Santo com 5,2%. Muito longe de comemorar qualquer resultado.

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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