23 de abril de 2024
Colunistas Ligia Cruz

Delírios de um confinamento


Qualquer coisa pode ser um bom pensamento, desses que chegam furtivos, tomam espaço e se acomodam. Alguns são bem-vindos, com hífen sim, o outro é nome.
Esse exercício nunca foi tão praticado pela humanidade, pelo menos para quem se sente aprisionado no espaço que criou, com todas as coisas importantes, para chamar de suas.
E quem não tem casa e vive nas ruas, tem um bairro inteiro, uma cidade toda para chamar de sua. Mas esse alguém prefere um vão de viaduto para abrigar-se com seu cão. Isso dói.
Pensar em tudo isso é dar asas para coisas tristes também. Temos todo tempo do mundo para pensar sobre isso tudo. Sem aquela rotina massacrante em que todos os dias são iguais.
Às vezes algo gruda na mente e insiste em não sair. Acontece. E quanto mais se quer esquecer, mais o danado se acomoda vagabundo. É como aquela música de que se gosta. Você começa a cantarolar e logo a dita se torna posseira. Pode-se levar dias para esquecer.
Pensamentos que desolam são “como fazer para pagar as contas”. Desagradáveis, cheios de sofrimento e angústia. Não deveria ser assim. Todas as alternativas já foram estudadas e pouco se conclui porque é da vida real que se trata. Em pensamento se pode sonhar. Melhor dar um tapa nesses e logo passar para outro.
Dá para escolher: vou ganhar na mega e resolver todos os problemas! Os meus e de algumas pessoas, as que merecem. Todo mundo pensa assim. Aquele parente fofoqueiro posso esquecer, nem sei porque pensar nele aqui, talvez porque tenha mais importância do que se imagina.
O melhor é esquecer. Pensar em uma coisa abstrata é melhor. Algo factível seria ideal. Xô coisa ruim! Passa! Como diríamos ao cachorro que vem roçar a perna debaixo da mesa.
O pensamento vagabundo é livre, quase promíscuo, vai com todo mundo. Não tenho tempo para esse. De repente, uma torta de morangos na geladeira, um chicabom no freezer, quem sabe. Mas coisa boa engorda. A opção seria uma salada de alface, com mais alface, mais limão, mais alface, mais sal, mais alface. Sem graça.
Tenho todo tempo do mundo para pensar. Sobrevivência é o maior de todos! Ou é o ego? O primeiro, com certeza achata os neurônios. Mas o ego é como um deserto. Um Saara com tempestade de areia. E lá no topo de uma duna estou, olhando em volta, uma vastidão de nada. Ou de tudo?
Não dá para abrigar tudo aquilo em uma mente tão pequena. Ainda tem os camelos, o oásis em algum canto. Mas deserto não tem canto. No meu tem o que eu quiser, sem qualquer taxa do mercado financeiro, não está na Bolsa de Valores. Dali vou para o Taj Mahal espiar aquela beleza toda feita por amor. Nem todas as histórias de castelos são assim.
A maioria foi feita para proteção contra os inimigos, grandeza, imensurável poder, como as colunas gregas que estão lá por milhares de anos para imaginarmos o que outrora pensaram os antepassados. Foram feitas para não se esquecer. O que se quer ou quiser cabe num pensamento. Todas as obras do mundo, os desejos, os amores, as dores, as pessoas, as coisas.
Mas pensar também cansa. Melhor pensar em não pensar. Fugir de tudo que é concreto. Abstrair. Coisa difícil. Tem um vírus assassino ceifando vidas, causando medo, nos enclausurando. Não posso pensar lá na praça, na praia. Como eu, bilhões de pessoas estão assim neste momento, com seus pensamentos, vulneráveis, segregadas, com medo. Melhor não pensar nisso.
Ande pela casa como se estivesse em um parque, desarme o espírito para coisas ruins. E tudo será mais um capítulo de nosso tempo.
Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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