Entre as numerosas tarefas que desempenham fora de suas funções como juízes, de palestras contra o governo no exterior à militância em favor da impecabilidade das urnas eletrônicas, os ministros do STF encontraram tempo para escrever um livro. Pelo nível de qualidade que demonstram na redação dos seus despachos, em geral escritos num português semialfabetizado e com ideias de estatura ginasiana, não se poderia esperar grande coisa de mais esse esforço literário dos membros da nossa corte suprema. A obra confirmou “o apronto”, como diziam antigamente no jóquei – ficou exatamente tão ruim como se poderia prever, levando-se em conta o que Suas Excelências costumam escrever. Teve, porém, um “plus a mais”: escolheram para o título uma palavra que representa justamente o contrário daquilo que fazem em seus atos como magistrados. Essa palavra é “Liberdades”.
“Liberdades”? Nunca houve, nos 130 anos de vida do Supremo, um bloco de juízes que tenha agredido tanto as liberdades individuais e públicas como a maioria dos ministros atuais. Não se trata de opinião; é a simples observação dos fatos. Os ministros que dão o título de “Liberdades” para o seu livro são os mesmos que tiraram a liberdade de um deputado federal em pleno exercício do seu mandato; ficou na cadeia nove meses, e depois foi condenado à uma extravagante pena de quase nove anos de prisão, por ter dirigido ofensas ao STF. Mantém um jornalista exilado no exterior, e um líder político em prisão domiciliar. Bloqueou o pagamento de salários. Censura o que os cidadãos dizem nas redes sociais. Nega acesso aos autos para advogados de pessoas que estão sendo processadas – e processadas de maneira abertamente ilegal. Aplica punições monetárias a comentaristas políticos cujas opiniões não aprova.
A obra confirmou “o apronto”, como diziam antigamente no jóquei – ficou exatamente tão ruim como se poderia prever, levando-se em conta o que Suas Excelências costumam escrever
Mais que tudo, o STF pratica uma aberração legal inédita na história jurídica do Brasil: conduz, como investigador, promotor e juiz, um inquérito policial contra “inimigos da democracia”. Isso, simplesmente, é proibido por lei – e qual a maneira mais perversa de agredir a liberdade do que usar o poder do Estado para desrespeitar a lei? É extraordinário, realmente, que um tribunal que deu a si próprio funções de polícia e poderes ilegais venha a falar em “liberdade”. O STF que está aí prende gente. Investiga a vida pessoal dos cidadãos. Viola o sigilo de comunicações pessoais. Aplica multas. Coloca tornozeleiras eletrônicas. Acusa pessoas por crimes não tipificados em lei. “Desmonetiza” comunicadores do YouTube. Expede solicitações de prisão a Interpol. Que liberdade é essa?
Os onze ministros, pelo que se informou, escolheram temas de sua preferência pessoal para abordar a questão das liberdades no Brasil. Uma ministra escolheu escrever sobre liberdade sindical. Um ministro escolheu a liberdade econômica. Outro escolheu a liberdade sexual. Até aí, tudo bem – é apenas mais uma coleção de trivialidades de alcance curto e profundidade rasa. O problema, claro, está quando falam da liberdade em si mesma. O que se tem, então, é a falsificação de sempre: em vez de liberdade, que é bom, ficam falando em “excessos de liberdade”. É o velho truque das tiranias. Antes de defenderem a liberdade, defendem “limites” para a liberdade – ou seja, seu objetivo é diminuir, restringir e cortar os direitos individuais. O que querem, sempre, é que as pessoas não sejam livres.
Fonte: Gazeta do Povo
José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.