20 de abril de 2024
Erika Bento

Contato – As vidas de Sofie – Capítulo 15

capa livro 1
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Continuação…
Capítulo 15
Uma hora depois, Anne e Sophie encontravam Paul em um café a dois passos do escritório do advogado a quem Elena havia confiado o seu testamento. Tão logo entraram no café, apressadas, fugindo da chuva que começava a cair, Paul as chamou. Quando Sophie se virou, viu-o sentado em uma pequena mesa quadrada de madeira envernizada, ao lado esquerdo da porta de entrada.
Paul levantou-se para cumprimentá-las e estava ainda mais abatido. Usava calças jeans, uma camisa listrada azul clara e uma pesada jaqueta grafite. Parecia mais velho de quando Sophie o viu pela última vez, no hospital. Sentiu-se ligeiramente culpada pelo modo como o tratara naquele dia. Talvez tivesse sido dura demais, intransigente demais, exigente demais. Deveria lhe pedir desculpas?
— Bom dia, Paul. Você está bem? Me parece um pouco abatido — sondou Anne.
— Estou bem, obrigado, Anne. Tivemos uma noite longa com a pequena Sophie — explicou, e seus olhos se iluminaram.
— Ela está bem? — indagou Sophie.
— Sim, sim. Coisas de criança pequena, nada demais. Por falar nisso, Elizabeth e Christeen lhes mandaram abraços. Pediram para vocês voltarem mais vezes.
— Pode apostar! — exclamou Anne com entusiasmo. — A pequena Sophie é adorável! Não vejo a hora de pegá-la nos braços novamente.
Sophie tinha pressa, não queria que a comversa ficasse em rodeios, mas manteve a calma. Pediu café com leite e brioches, enquanto Anne quis apenas um chá puro. Sophie refreou o quanto pôde o desejo de perguntar-lhe sobre o testamento, embora tenha sido este o motivo do encontro, mas queria ser mais amável com Paul. Ele merecia.
— Não deve ser nada fácil cuidar de uma criança tão pequena e frágil. Meu deus… — comentou, balançando a cabeça e pensando se um dia ser mãe estaria em seus planos. — Mas Christeen estava radiante quando a vimos! Como ela consegue, com tudo o que ela passou!
— Sim, é verdade. Christeen é uma mãe maravilhosa — disse Paul sorrindo aliviado. Por Christeen e por Sophie. Ele a amava como a uma filha e não havia dor maior do que sentir a distância que a discussão no hospital havia criado entre eles.
— Então, Paul, que história é essa de testamento? — perguntou Anne, imaginando que Sophie se remoia de curiosidade.
— Não sei o que dizer, Anne. Foi uma surpresa para mim, também — disse, levando a xícara à boca queimando os lábios com o café recém colocado à mesa. — Hoje de manhã, me ligaram da Stuart Solicitors London com esta novidade.
— A Stuart London? — perguntou Anne, boquiaberta.
— Sim, a própria — e vendo que Sophie não tinha ideia do que falavam, Anne fez um parênteses.
— Fizemos um trabalho para eles alguns meses atrás. É uma empresa enorme, muito conceituada no ramo jurídico. Redecoramos praticamente todo um andar.
— Um andar? — indagou Sophie.
— Sim, eles ocupam três andares deste prédio vitoriano, aqui — gesticulando em com o dedo indicador em círculos para o alto. — Não é coisa pequena não — comentou Anne pensativa, balançando a cabeça como se algo não se encaixasse e, como se Sophie pudesse ler os seus pensamentos, questionou.
— Isso deixa a coisa ainda mais estranha, vocês não acham? A senhora Elena contratou uma empresa deste porte para cuidar do seu testamento? Paul, por favor, o que você está nos escondendo? De verdade, acho que agora, mais do que nunca, nós precisamos saber, você não acha? — sugeriu Sophie, aparentemente calma.
— Sophie, acredite em mim, eu realmente não sei nada sobre isso. Como eu contei a vocês dois dias atrás, a família de Elena era muito rica antes da Segunda Guerra, mas, infelizmente, eles perderam praticamente tudo o que tinham. Pelo menos era o que Elena me dizia — Anne e Sophie o olhavam em silêncio e Paul continuou. — Durante a Guerra, a fábrica em Manchester, como tantas outras fábricas no país, teve que fabricar peças para aviões e munição para a Força Aérea Britânica. Independente do que faziam antes, praticamente todas tiveram que mudar suas linhas de produção para abastecer o nosso exército contra os alemães. E, como muitas também, foi alvo de intenso bombardeio, não sobrando quase nada. Quanto aos pais de Elena, vocês sabem o que aconteceu e, até onde eu sabia, a fábrica deles também tinha sido destruída, assim como a casa onde viviam — engoliu mais um gole de café e continuou.
— Depois de alguns anos que eu conheci Elena, ela me falou alguma coisa sobre uma herança de família, mas não levamos o assunto adiante. Ela era muito reservada e eu não quis parecer interessado em seus assuntos financeiros — disse em tom sóbrio. — Portanto, eu juro a vocês, não sei do que se trata — frisou.
Anne já havia terminado o chá e mordia nervosamente os lábios. Sophie atravessava Paul com o olhar tentando enxergá-lo por trás das palavras, mas não encontrou nada. Ele era de uma sinceridade visceral.
— Bom, acho que só tem um jeito de conhecermos mais esta face da senhora Elena. Vamos? — perguntou Sophie, olhando de Anne para Paul, que lhe deu um olhar reprovador.
— Sophie, você não deveria julgá-la desta maneira…
— Desculpe, Paul. Não foi mesmo minha intenção. Eu não estou, realmente, no meu normal — e aproveitou para enfiar o seu remédio goela abaixo, não com muita facilidade, como sempre — Me desculpe.
— Claro, Sophie. Acho que estamos todos em um momento muito delicado — sorriu, pegando a mão de Sophie e apertando-a num gesto de encorajamento. Sophie lhe sorriu de volta, num sorriso tenso, mas também sincero.
Anne olhava pela grande vidraça quadriculada ao seu lado, vendo pessoas indo e vindo com suas longas capas de chuva, tentando entender como a sua vida e a de Sophie haviam se transformado naquele gigantesco quebra cabeças. O mesmo pensava Sophie, já tentando juntar as peças, e percebendo que lhes faltavam quase todas. Sabia, porém, que algumas delas estavam a poucos andares acima de suas cabeças e sentiu a ansiedade bater no peito. Tentou acalmar-se, pensando em Nancy e em suas palavras ditas na noite anterior. Respirou fundo e silenciosamente enchendo-se de serenidade. Ou, ao menos, tentava.
Pouco depois, estavam sentados, os três, em um grande sofá de couro creme em uma luxuosa sala do sexto andar, forrada por um tapete vermelho escuro discretamente florido. As paredes eram de um tom também creme delicado, decoradas com detalhes retangulares em gesso, e sem quadros. Portas e batentes acompanhavam o mesmo tom branco dos adornos de gesso nas paredes. Uma suave música instrumental preenchia o silêncio cortante da sala.
— Foram vocês que fizeram essa? — sussurrou Sophie a Anne.
— Deus me livre! — rangeu entre os dentes, chocada.
— Eu sabia! É muito anônima. Você faz muito melhor — sussurrou de volta. Embora fosse um ambiente refinado, faltava personalidade, soava falso, de alguma maneira. — Agora fiquei curiosa para conhecer o seu andar.
— É o de cima, o da presidência. São quatro salas lindíssimas, duas delas de reunião e… — Anne foi interrompida por uma secretária que chamou Paul para entrar. Ela era jovem, tinha os cabelos loiros lisos amarrados em um rabo de cavalo e usava um tradicional tailleur azul escuro, monótono.
A secretária loira apresentou-os a um advogado jovem, muito sorridente, de cabelos escuros cuidadosamente penteados para trás, num elegante terno também azul marinho. A sala tinha duas janelas retangulares verticais ao fundo, com uma estante ladeando cada uma delas. Uma grande mesa de madeira à frente e três cadeiras de couro.
— Fico contente que tenham podido vir tão rápido. Por favor, sentem-se — disse o advogado que se apresentara como Liam Chester. — Sinto muito pela perda da senhora Gibson. Era uma pessoa fabulosa — falou em tom respeitoso enquanto se acomodava em sua cadeira. Anne e Sophie levaram um tempo para se lembrar de que o sobrenome de Elena era Gibson. — Posso oferecer-lhes algo para beber? Chá, água? — Sophie aceitou um pouco de água, sentindo a garganta secar de repente — Senhorita Smith, água, por favor — dirigiu-se educadamente à secretária.
— Doutor Chester, gostaria que o senhor nos colocasse a par da situação, por favor — pediu Paul, poupando-as de dar início à conversação. — Fomos todos pegos de surpresa. Conheço Elena há mais de trinta anos e não sabia que ela tivesse algum bem.
— Eu sei. A senhora Gibson nos falou sobre o senhor. Ela tinha muita afeição pelo senhor. Por vocês três, na verdade — correu os olhos às duas jovens à sua frente. — O fato é que a senhora Gibson nos confiou a administração de seus bens há muitos anos. Na verdade, a história foi um pouco ao contrário disso. — A secretária lhes servia a água em copos altos e brilhantes. — Meu avô e ela são conhecidos de longa data. Infelizmente, ele faleceu há cinco anos, deixando meu pai como seu procurador no caso
— cruzou os dedos das mãos apoiando-as sobre a mesa, inclinando ligeiramente o corpo para frente. — Meu pai faleceu ano passado e, desde então, eu tenho cuidado dos interesses da senhora Gibson. — Anne e Sophie continuavam caladas, intimidadas pelo olhar penetrante daquele jovem e desenvolto advogado. — Meu avô era o advogado da fábrica dos pais de Elena e somente muitos anos depois da guerra conseguiu localizá-la na instituição. Embora a fábrica tenha sido totalmente destruída, a família possuía ações que foram subindo consideravelmente de valor, com o passar dos anos. Quando meu pai a localizou, falou-lhe a respeito das ações. A senhora Gibson, logicamente, não sabia como administrá-las. A conselho de meu pai, ela vendeu algumas e manteve outras. O fruto da venda das ações foi doado para o instituto e as que ficaram estão sendo administradas, até hoje, por nós. — Liam abriu uma gaveta sob a mesa bem organizada, retirou uma pequena pasta de couro preta e a abriu. Retirou alguns papéis e os dispôs ao lado da pasta colocando a mão sobre eles sem dar uma pausa em seu discurso. — Um ano atrás, pouco depois da morte do meu pai, ela veio até a mim pedindo para fazer um testamento, nomeando as senhoritas Sophie Wallgrave e Anne Sorin — pronunciou o nome lendo-os em um papel a sua frente — como suas únicas e legítimas herdeiras — fez, então, uma pausa olhando para as duas jovens com olhares perplexos. Liam sabia do passado de ambas e pensou que a próxima informação pudesse interessar-lhes. — Posso adiantar que a soma não é de se descartar. As ações que a senhora Gibson possuía valem, no mercado de hoje, cerca de 250 mil libras — Anne e Sophie continuavam imóveis, chocadas. — Obviamente, cabe às beneficiárias decidir o que fazer com os bens. Vocês podem manter o investimento, vendê-las em parte ou totalmente. A nossa função é informá-las do fato e ficaremos muito honrados em poder contribuir com alguma consultoria, se vocês quiserem — Anne e Sophie continuavam sem palavras. Não sabiam como administrar o turbilhão de informações que caia sobre elas. Mal haviam tido tempo sequer de sentir a morte de Elena.
— Desculpe, doutor Chester, mas não consigo lhe dar nenhuma resposta agora — falou Sophie, depois do que pareceu ser um longuíssimo silêncio.
— Podemos repassar esta herança a alguém? — perguntou Anne, atraindo os olhares de todos para si. — Quero dizer… doar para o instituto, por exemplo? Não consigo imaginar que a senhora Elena não quisesse que este dinheiro fosse para onde ela passou a maior parte de sua vida, o lugar que ela amava! — Anne não conseguia entender a decisão de Elena e não se sentia sequer merecedora de tamanha benevolência.
— Senhorita Sorin… — murmurou Liam inclinando o corpo ainda mais para frente.
— Anne, por favor.
— Anne… se a senhora Gibson quisesse doar para o instituto, o teria feito. Pode acreditar — voltou para a sua posição anterior. — No último ano, desde que passei a ter contato direto com ela, pareceu-me uma pessoa muito lúcida e inteligente. Ciente das suas vontades. E, se me permitem a sinceridade, não estava muito satisfeita com os rumos da instituição — Sophie sabia bem onde Liam queria chegar. Elena não era de acordo com o fato de o Instituto ser, hoje, mais um colégio para ricos do que para crianças necessitadas.
— Entendo, Dr. Chester — disse Anne.
— Liam, por favor — Anne sentiu o rosto corar e continuou.
— Certo… Liam… eu entendo o que o senhor quer dizer, mas não consigo pensar em pegar essas ações da senhora Elena. Não me parece justo! — Sophie não falava nada e, aparentemente, não pensava em nada, também. Sentia a perda de Elena acentuar mais e mais.
— Anne — chamou Paul. — Você não vai pegar nada. Ela deixou, de presente, para vocês. Não aceitar seria o mesmo que faltar-lhe ao respeito, não acha? — Anne baixou os olhos refreando a emoção. — Ela teve muitos anos para pensar nisso, amadurecer a ideia e tomar uma decisão. E ela escolheu vocês. Vocês duas! — enfatizou Paul, chamando Sophie para o contexto.
— Eu… – Sophie sentia a cabeça pesada, talvez efeito do remédio. — Eu poderia tomar mais um copo de água, por favor?
— Você está bem, Sophie? — perguntou Anne, dando-se conta do estado de saúde da amiga. Agitou-se na cadeira e Sophie lhe sorriu enquanto massageava a têmpora do lado esquerdo.
— Tá tudo bem, Anne. De verdade. É que… — e dirigiu o olhar para Liam. — Eu, sinceramente, não sei o que fazer. Poderíamos ter um tempo para pensar ou, talvez, vocês pudessem nos orientar?
— Claro, senhorita Wallgrave — concordou com um sorriso satisfeito.
— Sophie, por favor — corrigiu sem sorrir.
— Claro, Sophie. Sem problema — concordou Liam com outro sorriso inabalável.
— E quanto aos seus honorários? — perguntou Paul.
— Sem honorários — enfatizou ele, sob olhares ainda mais surpresos. — Este é um caso de família. Os pais dela sempre foram muito bons para o meu avô. Ele a tinha
como a uma filha e quando soube que a senhora Gibson vivera tantos anos em um orfanato, nunca se perdoou por não tê-la encontrado antes — baixou os olhos como se reverenciasse uma imagem que lhe viera à mente, mas em seguida recuperou-se do que quer que tenha sido e continuou com a mesma firmeza de antes. — O mínimo que ele podia fazer era cuidar para que nunca lhe faltasse nada. Mas a senhora Gibson era excepcionalmente altruísta, como vocês sabem. Ela sempre doava o dinheiro para o instituto. Até um ano atrás, quando tomou esta decisão — Liam olhou fixo para Anne e Sophie e concluiu. — Estamos à disposição e sem honorários — enfatizou dando-lhes um sorriso sincero.
Anne segurava a mão de Sophie sobre o braço da cadeira com tanta força que Sophie sentia os dedos adormecerem, mas não sabia o que realmente estava sentindo. A cabeça lhe pesava sobre os ombros, os olhos queriam se fechar e tinha sede. Muita sede, ainda.
— Anne… Sophie… — continou Liam. — Vão para casa e pensem a respeito. Podemos nos encontrar novamente no final da semana e lhes daremos mais detalhes, tudo bem?
— suspirou e continuou, perdendo um pouco o ar artificial. — Olha, sabemos que os advogados tem a péssima reputação de pensar somente ao dinheiro de seus clientes e, para falar a verdade, não é de todo mentira — assumiu sem traços de vergonha. — É o nosso trabalho, somos uma empresa como qualquer outra, mas até mesmo as grandes empresas prestam serviços, digamos, por uma causa. Neste caso, a nossa causa são a amizade, a consideração e a gratidão — a voz de Liam abaixou um tom, mergulhando em um terreno que lhe tocava algo mais íntimo e delicado. — Meu avô foi criado praticamente nas ruas, era órfão de pai e mãe. Seu primeiro emprego foi na fábrica dos pais da senhora Gibson quando, acreditem, passava fome. Eles acreditaram nele e o fizeram estudar e se tornar advogado. Chegou a guerra e acabou com o sonho e a vida de muita gente. O destino quis que meu avô, órfão, se tornasse um advogado de sucesso. Infelizmente, por outro lado, o destino empurrou a senhora Gibson, que poderia ter tido uma vida rica e feliz, para um orfanato. E, para que? — Anne e Sophie sabiam a resposta, eram fruto do triste destino de Elena. — Para ser a mãe de dezenas de crianças que, um dia, se viram sozinhas como ela — e como nós, continuava mentalmente Anne enquanto Sophie controlava a emoção e as lembranças. Se não tivesse ido para os braços de Elena, o que teria sido de sua infância? E, agora sabia que ela fizera tudo isso por opção, mesmo podendo ter saído de lá, casar-se e ter seus próprios filhos. — Anne? Sophie? — chamou Liam, puxando-as de volta. — Vão para casa. Não se preocupem. Continuaremos a administrar os bens da mesma maneira como antes. Era nosso dever informá-las e, quando quiserem, estaremos prontos a lhes indicar o que fazer, quando e como — sorriu com os lábios erguidos num arco perfeito e sincero. Sophie lhe dirigiu um último olhar penetrante, como se desconfiasse de alguma coisa. Na verdade, desconfiava, mas não sabia do que. Então, decidiu-se.
— Está bem. Vamos pensar a respeito. Certo, Anne? — virou-se para Anne, que ainda lhe apertava a mão com força.
— Hã.. sim.. claro. Claro — respondeu, perdida em seus pensamentos.
— Muito bem. Estamos à disposição. Preciso apenas que vocês assinem estes documentos, por favor. São somente formalidades jurídicas de que vocês estão cientes da herança recebida e que confiam ao nosso escritório a administração dos bens, sem honorários — enfatizou. — O contrato pode ser rompido a qualquer momento — reforçou, empurrando dois documentos iguais a Anne e Sophie, que leram com atenção e depois assinaram.
Liam levou a mão a uma pequena caixa prateada e tirou três cartões de visita entregando-os um para cada.
— Aqui tem os telefones do escritório, o meu celular e também o email. Vocês podem me procurar quando quiser.
— Obrigada, Liam — agradeceu Anne, enquanto Sophie analisava o cartão de visitas.
Liam Chester, presidente da Stuart Solicitors London. E Sophie pensou se não deveriam ter sido atendidas no andar de cima. Levantou-se, conseguindo se desvencilhar da mão de Anne, esticando a sua para Liam que a apertou cordialmente.
Paul e Anne também se levantaram, cumprimentaram Liam e os três saíram da sala. Desceram calados pelo elevador até o hall de entrada, quando Sophie parou, dirigindo-lhes um olhar interrogativo.
— É só impressão minha ou tem alguma coisa errada em tudo isso?
— Neste momento, não posso dizer nada. Estou chocada e literalmente destruída por dentro — respondeu Anne num sussurro enroscado por alguma emoção que não sabia decifrar.
— Provavelmente é apenas o choque de tudo isso, Sophie. O rapaz me pareceu muito sério. Vou consultar alguns amigos advogados e voltamos a falar sobre isso até o final da semana — disse Paul, abrindo uma pesada porta de vidro dando-lhes passagem.
— A senhora Elena era muito mais do que imaginávamos… — Sophie lançou o comentário no ar esperando que Paul o pegasse, mas ele ficou em silêncio, temendo que ela quisesse saber mais. Saber tudo o que ele tinha a lhe dizer.
— Bem, Paul — interferiu Anne. — nos falamos nos próximos dias então, certo? — disse, olhando para o céu cinza sobre suas cabeças.
— Não — disse Sophie, abruptamente. — Se você não se importar, gostaria de terminar a conversa que começamos no hospital, Paul.
Sophie tinha uma voz calma, mas carregada de expectativa. O olhar era ansioso e Paul não sabia como reagir. Seus olhos o traiam e tentou fugir do olhar decidido de Sophie. De novo, foi salvo por Anne.
— Sophi, vamos para casa. Acho que já tivemos uma dose boa de emoção por hoje, você não acha? — sugeriu Anne esperançosa, mas Sophie não tirava os olhos de Paul suplicando para que ele colocasse um fim àquela tortura em que vivia desde que Elena se fora. Paul desviou os olhos para o lado novamente enquanto Sophie esperava a sua resposta.
— Tudo bem, Sophie — e voltou a olhá-la, vendo duas grandes pupilas dilatadas, eufóricas como o olhar da mesma criança que, um dia, encontrara no hospital. Cheia de medo, mas de esperança, excitada por uma nova chance de vida.
Improvisamente, Paul a abraçou com lágrima nos olhos. Sophie retribuiu o abraço, sentindo o coração acelerar e a garganta se fechar ainda mais. Anne os encarava. Mas que diabos! Olhou o relógio e interrompeu.
— São quase uma da tarde. Se vamos ter uma longa conversa, poderíamos ir para um lugar melhor, não acham? — perguntou, abraçando a si mesma sentindo os grossos pingos da chuva que voltava a cair.
— Podemos ir a um restaurante que conheço, aqui perto. Comemos alguma coisa e conversamos. Que tal? — sugeriu Paul, e Sophie assentiu seguida por Anne.
Caminharam três quadras ao sul, a passos largos, e chegaram a um pequeno restaurante irlandês de paredes forradas com painéis de madeira. Escolheram uma mesa ao fundo, onde, pelo menos até o momento, ainda estava vazio e Sophie ficou aliviada. Precisava de espaço para respirar.
Enquanto olhavam o cardápio, Sophie sentiu o estômago revirar. Não tinha fome, queria apenas desvendar os segredos que envolviam Elena e o passado de ambas. Além do que, não era uma grande fã da culinária irlandesa, achava-a picante e pesada. Olhou o cardápio várias vezes e acabou pedindo uma salada. Anne e Paul escolheram o bife irlandês, com pimenta, cebolas, molho de mostarda e batatas.
Sophie olhou para Paul repassando mentalmente a história que ele lhes havia contado no hospital para ter certeza de que o derrame não havia deixado nenhuma lacuna. Queria saber mais. Queria saber por que ela vira o passado de Elena em visões, qual o recado que Elena queria passar quando lhe dera o quadro e por que nunca lhe contou a verdade?
Paul tentava evitar o olhar direto de Sophie, fingindo estar, ainda, olhando o menu, mesmo que o pedido já tivesse sido feito. A tensão era palpável e Anne tomou a iniciativa.
— Bom, estamos aqui, certo? — olhou para Paul e Sophie, que ainda o encarava suplicadamente. Sentiu uma pontada no coração e perguntou. — Sophi, você está bem?
— Sim, Anne. Tudo bem — sorriu para Anne e disse. – Paul, por favor…
— Sim, Sophie, vou lhes contar tudo — prometeu Paul, tomando um grande gole de água. E começou.
Droga, preciso de um cigarro pensou Sophie sentindo a garganta seca e o peito elevar-se e retrair-se insistentemente como uma bomba furiosa. Espero que não exploda nada aqui dentro. Respire, Sophie. Respire e fique calma! dizia para si mesma.
— Dolores… Vocês se lembram que lhes falei dela, não? — ambas assentiram. — Dolores foi mais que uma amiga para Elena. Eram como irmãs. Duas irmãs unidas pela guerra, sozinhas em um orfanato, cujo amor era verdadeiramente genuíno, unidas em tudo e para tudo. Mas este amor não era bem entendido por outras pessoas. Era uma época diferente… — e Paul sentiu o coração encolher lembrando-se de quando Elena lhe contara toda a história.
Alguns dias depois que Sophie encontrara o quadro no estábulo − pouco antes de Paul visitá-las com a suspeita do nome falso −, Elena ligou para Paul e sua voz parecia apreensiva. Pediu que ele fosse ao orfanato assim que possível. Precisava lhe falar sobre Sophie. Paul foi no mesmo dia.
Era uma manhã nublada e fria. Quando entrou na sala de Elena, encontrou-a com os olhos inchados. Era óbvio que algo não estava bem. Perguntou-lhe o que havia acontecido e Elena lhe disse que Sophie estava bem, mas estava fadada a uma vida muito, muito difícil. E começou a lhe contar a sua história, enquanto tomavam um Earl Grey com leite. Elena parecia descontrolada, como se mal conseguisse coordenar as próprias ideias.
— Paul, tudo está acontecendo, novamente. Sophie e Dolores… oh meu Deus, pobre menina, pobre menina! — Paul sentia-se perdido, preocupado por Sophie e, agora, por Elena.
— Elena, o que está acontecendo? — perguntou mantendo o seu tom tranquilizador.
— Você se lembra de Dolores, não? — perguntou Elena com os olhos marejados.
— Sim, claro, a sua amiga de infância…
— Sim, minha amiga. Minha querida Dolores — a sua expressão vagava, ora no presente, ora no passado. Era difícil acompanhar. — Pobrezinha… — e caiu em lágrimas.
— Elena, fique calma, por favor. Conte-me o que está acontecendo… — era a primeira vez que Paul a via tão abalada.
— Dolores era uma menina adorável, Paul. Tão especial! Tão sensível! — Elena se esforçava para manter as lágrimas dentro dos olhos. — Quando meu pai quis que eu viesse para cá, eu não poderia suportar a ideia de que a minha amiga estivesse sozinha ou pior, morta, em algum lugar. Enquanto ele falava com o sacerdote da igreja, eu fugi, sai correndo pelas ruas para encontrá-la.
— Eu sei, me lembro que você me contou, Elena — disse em tom caloroso, enquanto inclinava o corpo para frente sentado na poltrona ao lado dela. — Eu não posso imaginar como foram aquelas dias para vocês.
— Foi terrível, Paul. Terrível! Eu não sabia onde ela morava, mas sabia que tinha que voltar para casa, porque eu sabia que ela estaria me procurando, também. Eu corri, gritando o seu nome, enquanto meu pai corria atrás de mim, minha mãe chorando, eu chorando e, quando cheguei à nossa rua, a vi de longe. Eu não podia acreditar em meus olhos. Eu a havia encontrado de verdade! — o olhar de Elena estava distante, num passado que tanto a fazia sofrer, e sua voz saiu cadenciada. — Ela estava encolhida, do lado de muitos escombros, chamando o meu nome. E quando eu a vi, ela se levantou e me abraçou. Oh, tão pequena, tão frágil! Os lindos cabelos ruivos estavam sujos, as roupas… as roupas rasgadas e a pele … — Elena tremia e tocava o próprio rosto. Suas mãos e todo o corpo convulsionavam em uma emoção contida que explodia em palavras. — E ela me disse. “Eu sabia que você viria. Eu vi você correndo e corri também, até aqui. Eu via você em minha mente e os meus olhos eram os seus,
Elena. Eu cheguei até você e você não estava. Mas agora você está aqui e eles estão mortos, Elena. Meus pais estão mortos.”
Elena chorava compulsivamente enquanto Paul tentou acalmá-la pegando suas mãos entre as suas, sentindo a voz de Elena que entrava em seus ouvidos desesperadamente, deixando-o confuso.
— Dolores me olhou e parecia que não estava lá. Seus olhos estavam tão assustados. Em choque! Eu a abracei e senti meu pai nos puxando, praticamente nos arrastando para uma rua onde um carro nos esperava. Meu pai gritava que devíamos sair dali e as bombas caíram novamente. Ele nos enfiou dentro do carro. Eu nem sequer me despedi deles, Paul. O carro se afastou e vi meus pais pela última vez, da janea do carro, com Dolores chorando ao meu lado — a dor que Elena sentia deixava o seu corpo em lágrimas correntes que lhe banhavam todo o rosto. — E, então, viemos até aqui — deu uma pausa, tentando se recompor e sua voz saiu mais firme. — Eu não conseguia soltá-la dos meus braços. Dolores desmaiou nos meus braços e eu tinha tanto medo de que ela tivesse morrido… — Elena hesitou novamente, erguendo os olhos para o alto. Seus olhos azuis inundados de dor e terror. Tantos anos depois e ela ainda tinha pesadelos de olhos abertos com aquele passado. — Eu cuidei dela como pude e ela cuidou de mim como pôde, mas Dolores era especial. Ela tinha um dom — virou-se para Paul, fitou-o nos olhos e disse, pontuando cada palavra, como se fosse a única chance que Paul teria para entender a sua mensagem. — O dom de ver a dor das pessoas que amava. A minha dor — e Paul ficou atônito. Passava de Dolores a Sophie em um salto. Voltava à Elena e sua dor infinita e sentiu o mundo virar de cabeça para baixo. — Ninguém poderia saber que Dolores era especial. Nem ela mesma entendia, mas eu sim. Ela não tinha sonhos, eram transes, como visões, em que via coisas, lembranças da minha vida, Paul. Coisas que ela não conhecia sobre mim e sobre outras pessoas por quem ela sentia afinidade — baixou os olhos para as próprias mãos que manuseavam nervosamente um lenço delicado de tecido. — No começo, conseguimos esconder tudo isso. Era o nosso segredo. Mas, aos poucos, algumas pessoas começaram a nos interpretar mal. Achavam que fossemos… que fossemos… amantes. — baixou os olhos. — E nos perseguiam, Paul. Nos perseguiam cruelmente!
— inalou profundamente. — Eram tempos difíceis e as pessoas eram intolerantes e ignorantes — respirou fundo novamente, franzindo a testa tentando fazer com que aquilo não a machucasse mais e continuou. — Até que um dia, Dolores teve um ataque em público. Oh meu Deus… oh meu Deus, pobrezinha… — sussurrou caindo em prantos novamente. — Estávamos bem ali — apontou para a janela, no jardim interno, fora das salas de aulas. — Ela caiu e tremia, tremia tanto que pensei que ela não fosse suportar os baques do seu corpo contra o chão. As pessoas foram se juntando e as enfermeiras chegaram. Levaram-na para a enfermaria. Eles a levaram de mim Paul, e eu fiquei apavorada que lhe fizessem algum mal ou, pior, que a levassem embora, mas felizmente ela recuperou a consciência e, no dia seguinte, voltou para o quarto. Não nos disseram nada, mas sentíamos os olhares da diretora, das professoras e principalmente das colegas — os olhos de Elena ardiam de dor. — Dolores foi isolada, como se fosse uma doença contagiosa. Alguns riam dela quando passávamos e isso me irritava, me deixava triste e nervosa. E Dolores sentia tudo, via tudo em sonhos, em visões, em transes, em ataques incontroláveis. Quando eu entendi que tudo aquilo era causado por mim… Por mim, Paul! — e sua voz tornou-se quase incompreensível entre soluços e pranto. — Eu passei a controlar os meus sentimentos, para que ela não os visse mais… para que ela não sentisse nada. Mas nem sempre eu conseguia. Não é fácil controlar os sentimentos quando se tem um coração como o meu, Paul — ponderou, com os olhos cheios de culpa. — Por sorte, eu a conhecia muito bem para saber quando ela estava para entrar em um transe e, assim, eu conseguia, às vezes, levá-la para um lugar seguro e longe dos olhares das pessoas. — Elena fez uma longa pausa. — Mas, no nosso último ano no instituto, eles a levaram — o brilho fugiu dos seus olhos e ela era pura tristeza. Paul precisou de todo o seu autocontrole de anos de experiência na área social para não demonstrar a dor que sentia, também. — Internaram minha Dolores em um sanatório. Eu fiquei tão desesperada, Paul. Eu não sabia o que fariam com ela, só tinha uma vaga ideia. Mas eu não pude fazer nada! Eu não era parente, era menor de idade, havia passado os últimos quatro anos em um orfanato. Imagine…
Fiquei quase o ano todo sem vê-la e somente quando saí dessa casa, pude encontrá-la
— Elena levantou-se e caminhou, lentamente, até a janela, mantendo os olhos no jardim e Paul a segui. — Uma das enfermeiras me deu o nome do sanatório, deu-me algum dinheiro e eu fui até lá. A senhora Flinn era adorável. Uma das poucas pessoas que nos entendia — Elena voltou-se para Paul ao seu lado, com uma sombra de sorriso no rosto. — Ela tinha contatos no sanatório e me dava notícias de Dolores. Soube que ela tinha sido diagnosticada como esquizofrênica e epilética… E você sabe qual o tratamento contra esquizofrenia, naquele tempo? — Paul continha as lágrimas baixando os olhos para as mãos de Elena, suadas de medo, de tensão e de angustia que aquelas lembranças lhe traziam. — Ah, Paul, você não queira saber… eu fui vê-la e ela estava tão mudada. Dolores não tinha mais vida, Paul. Era apenas um vestígio de um ser humano. A menina linda e sensível que eu conhecia e amava, a minha irmã, meu Deus, como puderam fazer isso com ela? — Paul sentiu que as pernas de Elena estavam vacilando e segurou-a pelo braço, levando-a novamente até a cadeira. — Dolores vestia uma camisa de força, sentada em uma cadeira velha, os cabelos despenteados e sujos. Tinha um olhar vazio. Seus olhos tinham escurecido, estavam tristes e sem vida, e ela…
não me reconheceu. Eu via marcas em suas têmporas. Marcas de aparelhos de choque, provavelmente. E me senti tão impotente, Paul. Fora a coisa mais triste pela qual já eu já passara. Talvez até mais do que a notícia da morte dos meus pais — baixou os olhos novamente. — Eu quis morrer, naquele dia. Quis morrer e levar Dolores comigo. Queria que ela não passasse mais por aquilo. Tínhamos apenas dezesseis anos, Paul. Dezesseis anos… — repetiu Elena com uma voz ainda mais baixa. — Uma vida jogada fora… Dolores queria ser bailarina, quando criança. Tinha mãos tão delicadas, oh meu Deus… — Paul não conseguia dizer nada que pudesse confortá-la. Sentia-se vazio. Vazio de esperanças por Elena e Dolores. Limitava-se a tocar-lhe as mãos e acariciá-las com seus dedos, com afeto. — Eu voltei para cá e a Flinn, a enfermeira, me levou para a casa dela. Fiquei com ela alguns dias, mas nada me tirava a vontade de morrer e não pensar mais em nada. Queria tirar Dolores de lá, mas era impossível. Eu não tinha ninguém. Ela não tinha ninguém. Éramos sozinhas, Paul, e um dia, foi como uma iluminação em minha vida. Eu percebi que tinha que proteger crianças como eu e, principalmente, como Dolores. Flinn conseguiu com que eu voltasse para cá, não mais como interna, mas como sua assistente na enfermaria. E aqui eu fiquei. Cada vez que eu visitava Dolores, uma parte de mim morria um pouco. Eu só vi Dolores sorrir uma vez, em todo o tempo em que ela esteve no sanatório. Foi para o Rudy, um cachorrinho que apareceu lá. Ela sorria para ele, de dentro da sala lacrada com grades. Ela sorria enquanto ele corria pelo jardim. Mas eu só o vi uma ou duas vezes. Acho que deram um fim no pobre coitado… — comentou com amargura. — Dois anos depois, Dolores morreu — baixou os olhos e o tom de voz. — Tínhamos dezoito anos, Paul — ergueu o olhar novamente, como se Paul tivesse que vê-lo para crer. — A idade em que o futuro se descortina diante dos nossos olhos… e, para Dolores… o espetáculo havia terminado — Elena olhava Paul com tanto sofrimento que deixou uma lágrima tímida escorrer, enxugando-a nervosamente. — Você entende, agora, Paul? Entende o que acontece com Sophie? Ela é como Dolores. Ela é especial! E eu não posso deixar que isso aconteça com ela, também. Nunca, Paul. Nunca! – ele precisou de alguns segundos para se destacar do passado de Elena e pensar em Sophie. Sim, ela era especial, isso ele sempre soube. Seus olhos escuros e profundos refletiam um brilho diferente. O brilho do amor que sentia pelos outros e, assim como Dolores, atraia para si a dor dos que amava; a dor de Elena.
Elena levantou-se e caminhou com dificuldade pela sala e Paul a viu, realmente, com a idade que tinha. A Elena forte e corpulenta desaparecera num piscar de olhos. Paul a via por dentro, triste, sozinha, confusa e culpada. Uma mulher que morrera aos dezoito anos junto com a sua amiga, mas que, por amor ao próximo, direcionou sua vida a proteger as crianças. Ele sentiu-se infinitamente pequeno diante da grandeza de Elena e infinitamente protetor diante da fragilidade de Elena. Ele tinha que ajudá-la.
— Elena, você não tem culpa alguma do que aconteceu a Dolores. Eram tempos diferentes!
— Eu deveria ter cuidado dela, Paul! E eu a deixei ir… — Elena falava em tom baixo e culposo, de costas para ele, olhando novamente o jardim pela janela.
— Não, Elena. Você também era uma criança. Não tinha poder algum para fazer nada e você fez tanto, tanto por dezenas de outras crianças — ele baixou os olhos. — Oh, Elena…
— Eu sei. E isso me conforta muito, Paul. Passou a ser a minha vida. Cuidar destas crianças, amá-las como ninguém quis. E eu as amo, Paul — a voz de Elena recuperava o tom, virando-se para Paul. — E é por isso que eu quis contar tudo a você. Sophie é especial e eu não vou deixar que nada aconteça a ela — caminhou com firmeza até Paul ainda sentado na poltrona. — Este será o nosso segredo, Paul. Estou compartilhando o meu segredo e o de Dolores com você, agora, por Sophie. E por Anne. Estas meninas vão viver dias difíceis e vão precisar de nós, você entende, Paul?
— Sim, entendo — concordou, sem hesitar. Sophie era muito pequena para entender o que se passava com ela, a sua sensibilidade, ou o seu dom.
— Pode ser que isso passe com o tempo. Eu não pude saber se com Dolores passaria, a vida não me deu esta chance, mas com Sophie é diferente — Elena apoiou a mão no ombro de Paul e disse. — Vamos dar esta chance a ela e observar, está bem?
— Elena, podemos falar com algum especialista sobre isso.
— Não. Não, Paul. Não vamos não — e deu-lhe as costas, novamente.
— Elena, os tempos mudaram! Sophie pode ter um tratamento, agora — levantou-se, circundando-a.
— Não! — Elena alterou a voz como Paul nunca vira antes, olhando-o duramente.
— Tudo bem — rendeu-se. — Pode contar comigo — não era mais o assistente social falando, mas o amigo de Elena, de Sophie e de Anne; e Elena respirou aliviada.
Quando Paul terminou o seu relato, tinha os olhos marejados e fixos em seu prato ainda cheio de comida. Um bife frio que não o inspirava mais. Anne soluçava com a cabeça escondida entre as mãos e Sophie olhava para Paul, mas não o via. Não via nada a sua frente. Tinha o corpo marmorizado, os dedos afundados em suas coxas tentando se agarrar ao presente e sua mente estava em combustão. Não conseguia identificar suas emoções, amontoadas umas sobre as outras, pressionando tudo por dentro. Pulmões, rins, fígado, estômago, bexiga, garganta e pensou que explodiria em mil pedaços, ali mesmo. A pressão em sua cabeça era insuportável.
Pensou no quadro e lembrou-se do que vira apenas de relance, na mente de Elena, uma vez. Agora se lembrava. Vira Elena depositando os móveis e os enfeites da sua sala no estábulo. Na vida real, isso acontecera muitos anos antes, possivelmente em uma das vezes que Elena doara uma quantia ao instituto, porque muitos móveis estavam sendo trocados, em sua visão. Ela o colocara ali até que a reforma na sua sala terminasse, mas ele acabou caindo e ficando perdido entre poltronas e cadeiras. No dia em que teve a visão dos cavalos, Sophie “espiou”, sem saber, as memórias de Elena e sabia onde achar o precioso quadro.
A mente de Sophie se contorcia e se fixou em Dolores e o seu “dom”. O estômago de Sophie sofria espasmos, agora. A culpa de Elena era tão latente que chegava a doer. O destino de Dolores fora cruel e Sophie se lembrou das zombarias que sofrera, ela mesma, no orfanato, e de todas as vezes que Elena veio em sua defesa. Somente agora, percebia o grau de hostilidade com que Elena a defendia das outras crianças. Era apenas um olhar diferente, mas estava toda lá, a sua amargura, a sua dor e a necessidade de protegê-la, como não conseguira fazer com Dolores.
Agora, Sophie entendia, e desejou debruçar sobre o corpo de Elena novamente, deitada naquela cama de hospital. As lágrimas rolavam pelo seu rosto e Sophie sentia apenas a temperatura do seu corpo cair, como se todo o seu calor tivesse sido jogado dentro de um poço sem fundo, caindo, caindo pela eternidade.
Elena queria lhe contar tudo. Tentou, nos seus últimos dias, mas não sabia se conseguiria enfrentar o seu passado, novamente. Seu último gesto foi dar-lhes os presentes, forçando Paul a fazer o que ela não tivera coragem. Paul, que agora, estava no centro do seu tornado mental. Paul, rompendo com o silencio de Elena que durara quase uma vida inteira.
Elena estava em paz, agora, e Paul… ah, pobre Paul, tinha os ombros caídos, pesados de tanto carregar o peso da responsabilidade por nunca terem revelado a verdade. Paul, que a salvara das suas próprias dores e lhe dera uma chance de vida! Havia levado-a até Elena, a única pessoa que poderia me entender. Se tivesse caído em outras mãos, estaria, também, em um hospital psiquiátrico? Oh, não… como pude ser tão egoísta com ele, com todos eles! Anne! Oh, não, Anne! O quanto você tem sofrido por mim, me aturando, me defendendo!
Sophie precisava respirar. Precisava desesperadamente respirar e se levantou, num sobressalto, partindo a armadura de pedra que aprisionava o seu corpo, deixando a cadeira cair para trás, correndo pelo restaurante afora. Quando saiu, deixou o ar invadir os seus pulmões desesperada, caindo em lágrimas. Soltou o corpo sobre as mãos apoiadas no joelho e chorou, compulsivamente.
Meu Deus, meu Deus, senhora Elena. Por que? Por que? Por que algumas pessoas têm que sofrer tanto assim, meu Deus! Ergueu os olhos para o alto, levando as mãos à boca, sentindo o rosto banhado de lágrimas e de chuva. Sentia o céu que chorava sobre ela em comunhão com Dolores, Elena, Anne e Paul. Correu para algum lugar, para qualquer lugar. Queria fugir e se esconder, mas a fúria que sentia a acompanharia, onde quer que ela estivesse. E Sophie sabia disso. Assim como sabia que as perguntas nunca terminariam, estavam apenas começando. Corria ao acaso enquanto a mente se debatia.
Pobre senhora Elena, pobre Dolores!…
Sophie corria, ainda desesperada, ouvindo ao longe alguém chamá-la, mas não se importava. Nem com o chamado nem com as pessoas que se viravam para acompanhar a sua desesperada fuga, enquanto outras lhe davam espaço com receio de serem atropeladas por aquela garota de cabelos longos que vinha em prantos em suas direções.
Sophie queria apenas fugir de si mesma e daquela maldição.
Viu uma pequena igreja e entrou, num ato desesperado, sem sequer pensar, sem sequer ter um objetivo. Entrou e correu pelo corredor central de piso em pedras claras, ladeado por bancos de madeira vazios. Ouvia somente seus passos apressados e seus soluços que ecoavam pelo ambiente e tinha os olhos fixos no grande vitral a sua frente, pouco acima do altar, que seguia até o teto em forma de cúpula, branco com ornamentos em dourado.
Sophie estava sozinha diante da imagem da crucificação de Cristo com os olhos fechados e suas feridas pelo corpo. A coroa de espinhos enfiada na cabeça, os pés, as mãos e o abdômen sagrando, na personificação do seu flagelo.
Sentiu que estava para vomitar, numa raiva incontrolada. Gritou com toda a força de seus pulmões. Gritou contra a sua dor, a dor de Elena e de Dolores. Gritou a falta de esperanças e a revolta. Gritou o ódio por seu pai e por todas as vezes que ele a agrediu sem que ninguém viesse ajudá-la. Gritou o abandono de sua mãe.
— Aos diabos com vocês, com todos vocês! Onde vocês estão quando uma criança precisa? ONDE? Escondidos aqui, no meio das suas riquezas e promessas? HIPÓCRITAS! MENTIROSOS!
Sophie virava-se nos calcanhares, sendo seguida por olhos de anjos que a encaravam docemente e sentia mais e mais repulsa.
— ONDEEEEEE..!!!!!????? ONDE VOCÊS SE ESCONDEM????? — vociferou com as vozes de todos que habitavam o seu mundo interno de terror, exorcisando anos de dor e sofrimento, não somente dela, mas de todos que, sem mesmo saber, passaram por sua mente. Gritou enquanto caia de joelhos, ainda chorando e praguejando em múrmuros. — EU ODEIO VOCÊS!!!! AAARGHHH…!!!!
Caiu de joelhos no piso frio como o silêncio aos seus insultos e dúvidas. Sentiu apenas uma forte pancada e tudo se apagou. Mergulhava exausta na escuridão da sua dor, no vazio da sua esperança e no silêncio da sua alma.
Um azul marinho profundo envolvia todo o seu corpo e Sophie ouviu ao longe uma voz masculina chamando-a. Ou melhor, chamava por alguém, mas não era ela. Havia outra pessoa ali, perdido como ela, na escuridão da sua revolta? Sim, havia, mas estava longe. A voz era apenas um fio agudo que brilhava ao fundo.
A intensidade do chamado foi aumentando, chegando mais próximo, sentindo a vibração daquela voz fazendo trepidar todo o seu sangue. Não conseguia sequer identificar uma palavra, mas sentia tão forte que poderia tocá-la. A vibração foi tomando conta da sua mente e do seu corpo, como uma onda intensa de calor, um choque profundo, mas não doloroso; algo que a chacoalhava por dentro.
O peso de uma mão forte tocou o seu braço e o toque transformou-se em outra onda, outro choque, de maior intensidade, fazendo-a tremer intensamente por dentro. Na escuridão da sua alma, Sophie sentiu um olhar penetrante e desesperado. A voz tornava-se mais nítida.
Claire, Claire, não tenha medo. Estou aqui
Claire? Quem é Claire? E quem é você? Queria perguntar, mas não tinha voz. Sophie havia se reduzido a apenas uma consciência.
Claire! — insistia a voz que assumia um tom potente e grave dentro de sua mente.
Quem é Claire?
Por favor, siga a minha voz! Confie em mim, por favor! — dizia a voz insistente e Sophie quis, desesperadamente, acordar daquele sono em que mergulhara intencionalmente. Usou de todas as suas forças para emergir daquele pesadelo angustiante envolto no mais escuro do seu vazio interior.
Claire!!!!! Por favor! Siga-a-minha-voz!
E uma luz suave começou a iluminar ao seu redor. Uma luz que trazia consigo uma brisa leve para dentro da sua mente que voltava a respirar. Havia um vulto ao seu lado que pouco a pouco se tornava mais nítido e Sophie congelou de medo. Era um homem que lhe tocava o braço.
Não, não! Saia daqui, não! — gritava em sua mente.
Calma, Claire. Sou apenas eu, Thomas!
O vulto tinha um nome e não era de seu pai. Sophie tentou se acalmar. Era apenas mias uma visão. Logo passaria e ela estaria de volta. Mas queria voltar? A confusão em sua mente não a deixava pensar. Preferia a escuridão da sua mente à dor, ao medo e à revolta que lentamente a deixavam em paz. Relaxou-se e se deixou levar.
Venha, Claire. Não tenha medo.
E um rosto se revelou. O mesmo rosto que a observara pelo espelho do seu banheiro. O mesmo rosto que a levara para aquela casa grande onde um homem de cabeça baixa esperava por alguém. O rosto que, agora ela sabia, tinha um nome: Thomas.
O jovem sorria para ela com satisfação e gratidão.
Obrigada, Claire. Agora venha. Foi um caminho longo até aqui. Vai ser mais fácil, agora. Confie em mim — implorou em sua mente e Sophie sentiu a sua mão forte conduzi-la com delicadeza. Sentiu uma onda de paz envolver o seu corpo.
— Quem é Claire? — perguntou, sentindo-se aliviada por ouvir a sua própria voz. Mas foi como se a pergunta desencadeasse um retrocesso. Viu Thomas se afastando lentamente, seu olhar apavorado e desiludido, desesperado.
Não. Não. Não, por favor!! — a voz de Thomas foi sumindo assim como o seu rosto, voltando a ser uma mancha, um vulto, uma sombra e nada mais.
A escuridão a engolia novamente.
E fez-se um silêncio sufocante.
Continua na próxima semana…

bruno

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