26 de abril de 2024
Adriano de Aquino Colunistas

Juventude

Eu tinha em torno de dezoito anos de idade quando o livro ‘Os vagabundos tocam em surdina’ do escritor Knut Hansum, apareceu na minha vida.

Foi a partir de uma, entre as incontáveis disputas travadas com meu irmão Angelo, que me tornei um admirador do Knut Hansum. Quem tem irmãos muito competitivos entenderá de cara a historinha que narrarei aqui, começando pelo fim para chegar ao inicio.

O fim:

Agora, relendo esse livro magnifico fui levado a reviver fatos e sentimentos que deram origem a minha admiração por esse controverso e admirável escritor.

Aconteceu assim.

Eu havia recém-descoberto Dostoiévski. Passei um bom tempo sob os efeitos do êxtase com Crime e Castigo após a impactante leitura de O Idiota.
A paixão juvenil é resultante da combustão descontrolada de hormônio e fúria.

Por semanas, talvez meses, qualquer conversa com irmãos e amigos me levava a desviar enfaticamente o tema do papo citando qualquer passagem dos livros que eu definia como os melhores romances já escritos. Tudo mais que se venha a escrever depois é desnecessário.

Ainda estava sobre os efeitos dessa onda quando fui convidado por um amigo para passar um fim de semana prolongado no seu sítio nos arredores de Vassouras.

A irmã dele, por quem eu tinha uma paixonite correspondida, também estaria lá. Tudo indicava que seria uma aventura maravilhosa. Como foi!

Longas e divertidas caminhadas, alegres conversas à beira da piscina. Ela, de corpão presente, em seu biquíni ousado para a época. Desejo e tesão transbordantes eram sinônimos da felicidade que eu gostaria de viver por toda vida.

Tudo ia às mil maravilhas até a chegada do irmão mais velho.

Ele, um cara dos seus vinte sete anos, formado em economia na PUC, trabalhando no Banerj, morando sozinho num apê em Copa, tinha seu próprio carro e discutia política com o pai almirante e os convidados adultos.

Nós, mais jovens, o admirávamos.

Para nós, ele era um intelectual boêmio. Homem bem sucedido, desejado pelas mulheres, que curtia o melhor da vida.

Sua irmã, minha musa, o criticava. Dizia não entender o porquê de ele sendo jovem, bonito e rico, varava as noites nos inferninhos da Prado Junior.
Eu entendia mas preferia não dizer nada.

No geral, ele não estava nem aí para nós, mais jovens.

Porém, nesse fim de semana o ‘intelectual’ resolveu dar atenção à galera mais jovem. Juntou-se a nós e em meio às conversas perguntou para mim o que eu achava do regime militar. Isso depois de sentar o pau no governo em que seu próprio pai se filiara.

Num dado momento quis saber o que eu estava lendo. Bem, nesse momento saquei todo meu entusiasmo por Crime e Castigo. Citei passagens do romance e manifestei meus ‘conceitos’ sobre moral e justiça. Enfim, fiz o diabo.

Ele escutou atentamente, levantou-se, foi ao seu quarto e voltou com o livro ‘O Muro’, livro de contos do Sartre. Lançou sobre a mesa dizendo: ‘Dostoievski, já era. Lê isso! Depois me devolve’.

Me senti pessoalmente ofendido. Fingi não dar bola mas fiquei muito puto.

Desnecessário dizer mas, oportuno lembrar, que o nosso ‘herói’ era um burguês progressista de vanguarda. Nos tornamos grandes amigos. Até sua morte trágica e precoce, desfrutei com ele conversas inesquecíveis,

De volta ao Rio, entrei no quarto onde o Angelo, meu irmão, estava lendo ‘Os Vagabundos tocam em surdina’. Mostrei para ele o livro do Sartre e comentei alguns trechos do papo com o ‘intelectual’ que me deixou puto. Estragou o fim de semana. Angelo respondeu: Ele tem razão! Esse cara que eu estou lendo agora é muito melhor que o Dostoiévski!

Isso despertou minha fúria contida. Desandei a falar para o Angelo o que me senti intimidado a falar para o ‘intelectual’.

– Foda-se! Eu acho, respondeu ele.

Naquela ocasião Google não existia. Se você não quisesse se dar por vencido em uma disputa intelectual era obrigado a recorrer às poucas livrarias ou ir à Biblioteca Nacional pesquisar.

Deixei de lado por um bom tempo o ‘Muro’ sartriano do ultraje. Me lixei para os comentários do Angelo e dei inicio à leitura dos Irmãos Karamazov.

Fim do verão, começo da vida adulta e desta historinha.

Há muito acabara de ler o extraordinário romance Irmãos Karamazov. Angelo pediu emprestado e me disse que eu deveria ler o livro do Hansum.

Orgulhoso, relutei por uns dias até abrir as primeiras páginas e mergulhar na literatura deslumbrante do Knut Hansum, que me levou a adentrar a idade adulta tendo como norte o primeiro e único protocolo estético que redigi na minha vida, que aqui resumo sucintamente:

Beleza e Mortalidade. O protocolo do esteta.

Evite comparar manifestações da beleza.


A admiração por raros e belos fenômenos é mais intensa quando plural e irrestrita.

Preserve critérios seletivos para o valor intrínseco de uma obra de arte e seja gentil quanto ao complexo caráter de um consagrado ícone humano.

Esse protocolo previne o esteta no tocante as armadilhas ideológicas e as sutilezas culturais que formatam o gosto supostamente pessoal.

Adriano de Aquino

Artista visual. Participou da exposição Opinião 65 MAM/RJ. Propostas 66 São Paulo, sala especial "Em Busca da Essência" Bienal de São Paulo e diversas exposições individuais no Brasil e no exterior. Foi diretor dos Museus da FUNARJ, Secretário de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas /FUNARTE e outras atividades de gestão pública em política cultural.

Artista visual. Participou da exposição Opinião 65 MAM/RJ. Propostas 66 São Paulo, sala especial "Em Busca da Essência" Bienal de São Paulo e diversas exposições individuais no Brasil e no exterior. Foi diretor dos Museus da FUNARJ, Secretário de Estado de Cultura do Rio de Janeiro, diretor do Instituto Nacional de Artes Plásticas /FUNARTE e outras atividades de gestão pública em política cultural.

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