11 de setembro de 2025
Carlos Eduardo Leão

Cirurgião, o ser sublimado

Um relato interessante de como nós, cirurgiões, somos vistos sob a ótica filosófica da intelectualidade.

Sábado à tarde, toca o telefone:

— “Dr. Leão, é a Yara. Meu marido cortou-se feio na mão e precisamos do senhor”.

Confesso: há anos não atendia uma urgência. Mas em meia hora já estávamos na Sala de Pequenos Procedimentos do Mater Dei — que de “pequeno” só tem o nome, porque quem está na maca acha sempre que está em Grey’s Anatomy.

Lá estava o Ney: suando como se tivesse acabado de fugir de uma horda de zumbis. Tentava bancar o machão, mas entregou a rapadura quando pediu que Yara ficasse de mãos dadas com ele. A mão boa, claro. Eis aí o retrato fiel do sexo forte: valentes até a primeira gota de sangue.

Descobri que o corte tinha sido obra de uma faca que, pelo relato, lembrava mais uma espada de Jedi. A ferida era extensa, profunda e bem irregular — típica de chef de fim de semana que acredita que cozinha é episódio de Master Chef, mas sem a parte de seguro de saúde. Felizmente, nenhum tendão ou nervo foi atingido. Só o ego masculino mesmo.

Enquanto eu preparava o bisturi para “embelezar” as bordas da ferida e garantir uma sutura decente, Yara me observava em silêncio. Yara, que não é apenas esposa do paciente, mas uma escritora e cronista de escol — dessas raras intelectuais que dão vontade de ouvir por horas, de tão sensata, lúcida e bem humorada.

Yara não piscava. Prestava mais atenção que coruja em noite estrelada. Foi então que, entre bisturis e pinças, ela disparou uma frase que vale um tratado de filosofia:

— “Doutor, vendo o senhor cortar, queimar essas veias sangrantes, retirar pedaços de pele com toda frieza, semblante inalterado e até uma certa indiferença… eu chego à conclusão de que o cirurgião é uma espécie de “assassino” que se sublimou”.

Pronto! Pausa dramática. Eu quase soltei a pinça e o porta agulhas, tamanho foi o impacto dessa observação. Enquanto eu costurava a mão do Ney, Yara já costurava uma tese. E de humor e profundidade misturados, coisa que só grandes intelectuais conseguem fazer.

De fato, cirurgia é uma agressão: cortamos, arrancamos, queimamos, amputamos. Até aqui, nada diferente do Jack, o Estripador. Mas é na tal da sublimação que mora o segredo. Sublimar é transformar a fúria do corte em arte, técnica e vocação. É passar do impulso de destruir para o dom de reconstruir.

Sublimar é altear-se à culminância da dignidade, da grandeza, da honra, do conhecimento. É enaltecer-se e glorificar-se do dom que Deus nos concede para os desafios que a arte cirúrgica nos impõe.

No fim, segundo à intelectualidade filosófica, ser cirurgião é isso: um potencial agressor que escolheu o caminho da luz — não o lado negro da força (apesar da espada Jedi do Ney).

Aos filósofos de plantão, ser cirurgião é mais que uma opção. É uma vocação irresistível! Significa ir além da excelência técnica, adotando uma abordagem humanística que reconhece a singularidade do paciente, buscando o seu bem-estar holístico que abrange não apenas a doença, mas o ser humano como um todo.

E cá entre nós, minha querida Yara: talvez você tenha resumido melhor que qualquer manual de cirurgia. Nós, cirurgiões, podemos até ser uma espécie de “assassinos”… mas sublimes. Com CRM e jaleco esterilizado.

Carlos Eduardo Leão

Cirurgião Plástico em BH e Cronista do Blog do Leão

Cirurgião Plástico em BH e Cronista do Blog do Leão

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