30 de abril de 2024
Walter Navarro

Coisas de fazer Deus perder a fé

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Uma gota faz derramar, Mariana que o diga. Uma frase deslancha uma crônica. Uma frase, em uma brincadeira de Tom Jobim.
Está gravada no CD que serviu de prefácio ao livro da irmã de Tom, Helena Jobim, “Um Homem Iluminado” sobre a vida do grande maestro. Ela pediu ao Chico Buarque um prefácio e ele, preguiçoso, genial e criativo como sempre, mandou, de sua fitoteca, conversas bem regadas entre os dois, na madrugada; músicas que Tom tocava para ele pôr letras, como a melodia de “Anos Dourados”. Chico demorou tanto que a música, tema de série homônima na Globo, não tinha a letra que só ficou pronta anos depois, ou bem depois.
O prefácio virou um CD, encartado no livro. Perdi este CD, ou foi roubado. Um amigo, que também adora o CD, Jayme Reis, me deu uma cópia… Que também não sei onde guardei. Talvez esteja junto ao amor profundo que Deus fez e escondeu na minha casa, pra ninguém ver.
Mas a frase bonita e avalanche é essa: “Se Deus fez o amor profundo, escondeu no mundo, pra ninguém ver”.
Rima com aquelas do mesmo Chico, em “Futuros Amantes”: “… O amor não tem pressa, ele pode esperar em silêncio num fundo de armário, na posta-restante, milênios, milênios no ar… Amores serão sempre amáveis, futuros amantes, quiçá, se amarão sem saber, com o amor que eu um dia deixei pra você”.
Deus fez o mundo e o amor profundo que só escafandristas e tatus podem ver e resgatar do fundo do mar ou do fundo do mundo?
Deus fez tudo que está aí de bom e de ruim? A vida e a morte, o amor, a paz e o ódio. A violência, as doenças? As misérias e a arte, as guerras e a fome, os mares, rios, bichos e árvores? O homem, a mulher e o amor? E escondeu este amor profundo num cantinho do mundo?
“Se foi pra desfazer, por que é que fez?”.
Deus fez o belo, o feio, tragédias e comédias? Deus fez Lula, Dilma, Trump e Hillary? Como é que pode?
Deus fez pai e mãe e a morte? Deus dá e tira? Deus inventou a traição, a injustiça, o egoísmo, a ingratidão? Deus fez Da Vinci, Picasso, Hitler e Stálin? Um pra provar o contrário do outro?
Por que Deus não fez só o certo? A água limpa e abundante, a terra sem seca e terremotos. O ar fresco sem furacão. Por que Deus fez as cores, a Gisele Bündchen e os cegos?
Por que fez o mundo tão grande e lindo, a vida tão curta e o dinheiro tão pouco e para tão poucos?
Por que Deus fez a poeira, o pernilongo e a britadeira tão barulhenta?
O que justifica o piolho; o espinho e marteladas no dedo?
Deus fez o cigarro, o whisky e o câncer? Fez a cama e o trabalho? A televisão e o Faustão? Pra que?
Pra que inventar as vacinas? Não seria mais fácil não criar as doenças?
Foi Deus quem fez você?
Trabalhou apenas sete dias e não terminou? Foi demitido por justa causa? Arrumou outro emprego, outra distração? Enjoou de seus brinquedos? Esqueceu de colocar gasolina e de pagar a conta?
Deus fez tudo; ficou doente, viajou, foi preso por vadiagem, morreu e não avisou?
“Deus é um gozador? Adora brincadeira? Tinha o mundo inteiro pra me botar e mesmo assim me fez logo brasileiro?”.
Como é que Deus pode fazer Arapiraca e fazer Paris? Angelina Jolie e Graça Fortes… Mel e fel… Pão e brioche… Vinho francês e whisky paraguaio…
Pra que serve sarna? Pra coçar?
Por que Deus fez quina de móveis e dedinhos do pé?
Deus bebe?
Acho que Deus criou o mundo e tudo nele, mas tinha mais o que fazer. Coisa mais importante, interessante. Não foi por maldade. Acho que Deus nos inventou, mas esqueceu de combinar com os russos; esqueceu de nós, como alguém esquece a água esquentando no fogão… A janela aberta, a torneira jorrando, a TV ligada, a luz acesa.
Ou então, ele escolheu um zelador bem descuidado.
PS: Me recuso a acreditar que Deus me fez, fez você e agora, eu sem você.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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