3 de maio de 2024
Colunistas Walter Navarro

Um dia de Michael Douglas

ó estive em Nova York uma vez e é uma das cidades mais sedutoras que conheço, mesmo com gente morando nos buracos do metrô ou nos esgotos.
Mas Nova York já foi um horror, terra sem lei, perigosa, suja para todos seus habitantes e não faz muito tempo.
Aí foi aplicada a tal “Tolerância Zero”, ligada à teoria das “Janelas Quebradas”. Um modelo de segurança pública em que a ação policial é especialmente intransigente com delitos menores, como não pagar o transporte público, a prostituição, os pequenos furtos, danificar o patrimônio, quebrar uma janela, etc.
É cortar o Mal pela raiz. Assim, teoricamente, não precisaríamos chegar ao “cúmulo” de castrar estupradores; a mão ou um dedo dos ladrões.
No Brasil, quem tem neurônios e caráter anda a flor da pele, à beira de ter um ou já em pleno ataque de nervos. Trocando em miúdos, milhões querendo fazer justiça com as próprias mãos, já que não temos a Sala de Justiça ou Super Heróis que nos defendam do Coringa e seus asseclas.
Não temos também um Clint Eastwood ou um Charles Bronson. E não somos Michael Douglas em “Um Dia de Fúria” que procurei, achei e revi ontem, em busca de ideias…
“Um Dia de Fúria”, (1993) de Joel Schumacher, é uma grande ideia desperdiçada, com dois grandes atores, Michael Douglas e Robert Duvall. Mais uma vez o roteiro fraco compromete o conjunto da obra.
Um policial (Duvall), em seu último dia de serviço, antes da aposentadoria; casado com uma histérica, que enche o saco o filme inteiro, por telefone, tenta deter os seguidos e violentos atos de William “Bill” Foster (Douglas).
Bill é um barril de pólvora de meia-idade; estressado, com o pavio instalado, cercado de fósforos. O cara, que trabalhava na Defesa, fabricando mísseis, está desempregado e em processo de divórcio. Pode nem ver a filha pequena, aniversariante do dia…
Neste cenário o estopim é o estresse do trânsito, gritos, brigas, buzinas, calor, etc. Louco, com carradas de razão, Bill fica (mais) puto, quando seu carro quebra no engarrafamento gigante em uma rodovia de Los Angeles. Pronto! “Fudeu o batatal, Darling”.
Juro e prometo não contar o filme todo. Mas sou obrigado a mais um pequeno resumo, um atalho para chegar ao Brasil.
30 anos depois, certamente acusariam o filme de racista ou xenófobo. Só espero que não sobre para o mensageiro aqui. As primeiras vítimas de Bill são um coreano e sua mercearia.
Bill discorda do preço da latinha de Coca-Cola, acha um roubo e começa a discutir com o cara. No auge da discussão ele solta essa: “Além de pegar o nosso dinheiro, não sabe nem falar a língua do meu país…”.
Os dois partem para a briga física. O coreano pega um taco de baseball para se defender, mas Bill é mais rápido e começa a quebrar a loja, contestando todos os preços exorbitantes.
O coreano fica desesperado com o prejuízo e diz que Bill pode levar a Coca por 50 “centabos”. Bill paga os 50 centavos, pega o troco e ainda leva o taco…
Em seguida, nosso herói está absorto num terreno baldio quando é abordado por dois “latinos hostis”. Bill, ainda calmo, tenta argumentar, mas os dois ensaiam extorquir uma grana para deixá-lo partir…
O taco de baseball entra em ação novamente, quebrando um braço e botando o companheiro para correr. Depois de desmontar os dois “cidadãos”, Bill leva o canivete com o qual foi ameaçado.
Ai começa o show de inverosimilhança. A dupla chama “los amigos” e, de carro, todos vão atrás de Bill, que estava no orelhão tentando convencer a mulher a deixá-lo ver a filhinha no dia de seu aniversário.
Com um arsenal no carro, a turma sai atirando em todo mundo, ferindo várias pessoas, menos Bill. Na correria, batem o carro. Bill, tranquilamente, vai até lá, pega uma das metralhadoras, dá um tiro na perna do mais valentão e, claro, rouba a sacola cheia de armas.
Em seguida, a violência, gratuita, ou nem tanto, continua, até o fim previsível.
Por que escrevo tudo isso? Porque anteontem tive “Um dia de Cão”, sem Al Pacino e “Um Dia de Fúria”, sem Michael Douglas.
E fiquei me perguntando o que Michael Douglas faria em um dia no Brasil de sempre, principalmente no Brasil de hoje.
Pensei nas “janelas quebradas e na tolerância zero” de Nova York…
O que Michael Douglas faria dia 1º de janeiro de 2023? Um 8 de janeiro de 2023? Acho que ele não precisaria de tanto para explodir.
O que Michael Douglas faria com o técnico de informática que furou três vezes comigo, sem dar a mínima explicação, satisfação; uma mentira esfarrapada que fosse? Quebraria o joelho do babaca com o taco de baseball?
O que Michael faria se tivesse que ficar na estrada, com um computador na mochila, debaixo de sol, esperando um ônibus que atrasou 40 minutos? Destruiria o ônibus com rajadas de metralhadora?
E se Michael entrasse no Itaú, numa farmácia, num supermercado e visse vários Caixas vazios, sem funcionários e filas quilométricas nos poucos que atendiam os clientes? Os do banco, com uma senha na mão, os do supermercado, com carrinhos lotados de picanha e cervejinha…
O que Michael faria caso precisasse resolver um problema de Internet, na Telefônica ou na prefeitura?
O que Michael faria com o pedreiro que não cumpre prazo e muito menos orçamento?
O que Michael faria num bar se, em vez da Coca-Cola, uma bosta de Heineken custasse não US$ 0,85, mas R$ 20?
O que Michael seria capaz de fazer com a Cemig, quando “a melhor energia do país” some por 24h e um raio queima o computador, a TV, a geladeira, o freezer, o portão eletrônico, o interfone e a paciência de Jó?
O que Michael faria com “todes” que fizeram o L? Não sei, mas posso rever o filme e anotar sugestões.
Mais que ironicamente, enquanto eu escrevia esta lista de desejos, amiga minha pede para eu traduzir um texto em francês, que ela não entendeu, mas achou lindo.
O texto é este: “Da Delicadeza. Tenho uma grande afeição pelas pessoas que gritam em silêncio, cujo sorriso, quase perfeito, esconde uma cicatriz em carne viva. Admiro estas pessoas porque elas têm, sem saber, a inteligência de não transmitir ao outro a demência do desgosto, porque elas têm a elegância de guardá-lo para si mesmas”.
O texto é mesmo muito bonito, mas o Ministério da Saúde Adverte: gritar em silêncio, esconder cicatrizes e guardar desgosto causa câncer.
Ah! Não preciso contar o final de “Um Dia de Fúria”, vocês sabem contra quem ela se volta, sempre. Mas posso repetir a fala final de Bill para o policial que lhe aponta um revolver: “Eu sou o bandido? Como isso aconteceu? Fiz tudo o que me disseram. Sabia que construo mísseis? Ajudo a proteger a América. Devia ser recompensado por isso. Mas dão tudo aos outros. Mentiram para mim. Hoje fez muito calor, não fez? Sabe; eu tinha uma arma no bolso. Tinha várias armas. Quer sacar? Um duelo entre o mocinho e o bandido? É lindo…”.

PS: Não tenho arma nem de plástico, mas no Mercado Livre acabei de achar: “Taco de madeira Baseball. Beisebol Resistente. Envio em 24h. 32 reais e 99 centavos. R$32,99. Em 3×11 reais. R$11sem juros”.

Walter Navarro, Los Angeles, 26 de Fevereiro de 2023

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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