3 de maio de 2024
Colunistas Walter Navarro

Três Cristos, dois Papas e um Spinoza

Tem gente tão otimista e masoquista que, como se esta vida não fosse o bastante, ainda acredita em vida após a morte e até mesmo em outras vidas.
O Hilário Gouveia, nos que acreditam em vidas passadas, é que, podem perguntar; todos eles foram reis, rainhas, princesas, marajás, faraós, milionários, artistas, gênios e por que não, presidente sem votos.

Nunca ouvi alguém confessar que foi escravo. Nem mesmo em filme de Ben Hur, como queria Nelson Rodrigues. Nunca vi alguém que foi testador de cheiro de desodorante em sovacos ou cobaia de supositório Extra-G da Pfizer. De vacina já, milhões!

Não conheço criaturas que, numa vida passada, foram inspetor de cusparadas de tuberculoso, limpador de caixa de gordura ou esgoto, guardador de lugar na fila, provador de caixões, analista de sexo ou inseminador de bovinos, limpador íntimo de sunga de sumô e torcedor do Atlético Mineiro em 2022, como eu.

Prefiro acreditar no Norman Mailer, um dos criadores do “New Journalism”, nos anos 1960, com Gay Talese, Tom Wolfe e Truman Capote.

O “New Journalism” (Novo Jornalismo, para quem não domina o aramaico) entrou em extinção antes de envelhecer. Era Jornalismo de verdade, romanceado, em forma de ficção; arte. Hoje, apedeutas acéfalos fazem péssima ficção como se fosse jornalismo.

Acreditar em vidas futuras e passadas equivale a acreditar na vida eterna. No delicioso “Noites Antigas” (1983), Norman Mailer ensina como ser eterno, mas com surpresas.

Sim! Não é porque você foi faraó, com harém de concubinas, que vai renascer na mesma mordomia. Pelo contrário, pode nascer eunuco…
E sobre eunucos, “Noites Antigas”, que se passa no Egito, tem uma passagem ótima.

Os eunucos do faraó eram escravos núbios. Até aí tudo bem. Tudo bem pro faraó que, esperto, mandava castrar; cortar língua e lábios dos eunucos que serviam seu harém de gostosas.

Indagada sobre o fato, uma das favoritas respondeu: “Estes núbios têm dedos maravilhosos…”.

Chuuuuuuuuuuuuuuuupa, faraó! Distraído e corno!

Mas voltando à vida eterna, o personagem principal de “Noites Antigas” não é o cruel faraó nem o pianista núbio, mas um general que caiu em desgraça.
O livro tem 676 páginas, mas vou dar a receita sem mais delongas.

Numa batalha, por descuido do general responsável, o leão, mascote do faraó, morre todo flechado em sua jaula.

Como castigo, o general perde sua patente e é condenado a quebrar pedras, num campo de trabalhos forçados.

Na pedreira, sob chicote e um sol de rachar pirâmides, ele fica amigo de um velho judeu que, moribundo, lhe conta o segredo.

Segundo o ancião, quando o general pressentisse a morte, por velhice, como em seu caso, deveria fazer amor com sua mulher. E tinha Viagra não!

Na hora da morte, que coincidia com a ejaculação, ele morreria, mas, simultaneamente, renasceria no ventre de sua mulher, viúva e mãe. Captaram?

Bom, ele entendeu e, durante todo o livro, vive, trepa, morre e renasce, tendo, em cada novo vida, uma profissão e um destino diferentes, sempre consciente de suas vidas passadas.

É o que não acontece com este povo que, hoje, vive mentindo sobre vidas passadas.

Um dos resultados desta angústia pode estar na loucura, da qual todos nós estamos por um triz.

Se não podemos ter outras vidas ou se temos, mas falta-nos a consciência e lembrança delas, o negócio é escolher uma e virar faraó ou Napoleão de hospício.

Quem não tem política, caça com Netflix. Assim, há duas semanas, aceitei sugestão de uma amiga, Bia, acho.

Gostei do título e fui conferir o filme “Três Cristos” (2017), de Jon Avnet; com um Richard Gere muito em forma, não física, no talento.

Richard Gere é o psiquiatra Alan Stone, que quer curar, sem choque e outros métodos chocantes, três doidos que se acham Jesus Cristo. Digamos que o trio não escolheu bem; tendo em vista o que aconteceu ao Cristo original.

Não, o filme não se passa em Barbacena, não é um calvário, nem acaba na cruz. É bom porque nos lembra a tênue linha entre a sanidade e a loucura. Isso, se esta linha existe.

Eu por exemplo, se ficasse (mais) louco, escolheria ser, não Jesus, mas o próprio Richard Gere. Vai que alguma enfermeira acredita… Recomendo o filme a todos os estranhos no ninho desta vida.

Os “Três Cristos” levaram-me a outro bom filme, “Dois Papas” (2019), do brasileiro Fernando Meirelles, com Anthony Hopkins e Jonathan Pryce.

Para mim, Meirelles, mesmo com seu esquerdismo inerente e tolo, é o melhor ou único cineasta brasileiro vivo.

O filme é Deus e o Diabo na terra do Vaticano. Cabe a cada telespectador escolher um ou outro, Bento XVI ou Francisco.

Eu fico com Bento que, além de XVI, é o Anthony Hopkins. No mais, se o Papa é argentino e franciscano com o dinheiro alheio, Deus é brasileiro do Paraguai e ateu.

No mais, cantemos “Igreja”, dos Titãs: “Eu não gosto de padre, eu não gosto de madre, eu não gosto de frei, eu não gosto de bispo, eu não monto presépio, eu não gosto do vigário, nem da missa das seis. Eu não gosto do terço, eu não gosto do berço. Eu não gosto do Papa”.

Brincadeira! Eu não gosto é de quem faz voto de castidade e de pedofilia. Mesmo assim, continuo acreditando em Deus, principalmente quando tenho dor de dente, como cantava o Jacques Brël.

E também, bem no estilo Woody Allen: “Se Deus existe, porque não me dá uma prova de sua existência? Como, por exemplo, achar um encanador, sábado, em Nova York ou uma bela conta em meu nome num banco suíço”.

Exagero, gente. Acredito em Deus, mas “por que ele não fala comigo. Se pelo menos tossisse…”.

Absurdo! Esta também é do Woody Allen, que ainda tem outra para se redimir: “é agradável, de tempos em tempos, tentar imaginar o que seria a existência se Deus tivesse conseguido um orçamento e roteiristas melhores”.

Woody Allen, judeu nada ortodoxo, gozador inveterado e inteligente praticante, deveria saber que Deus escolheu seu melhor biógrafo e roteirista, o não menos judeu, Baruch Spinoza.

Deus para Spinoza é o único motivo da existência de todas as coisas. Acabei de beber Deus na minha taça de vinho. Deus é passado, presente, futuro e Nelson Rodrigues. Deus é rei; faraó e eunuco. Deus é atleticano e jornalista.

Deus é a luz das estrelas, a cor do luar, as coisas da vida, o medo de amar, o medo do fraco, a força da imaginação e o blefe do jogador. Deus é Raul Seixas e Paulo Coelho.

Deus é gozador, maluco, beleza e fala sério. É pai, filho, Vitória e Espírito Santo. Deus é dentista na Suíça e encanador em Nova York.

Deus está em tudo, em todos e em todo lugar. Até em Brasília! Até na prisão, em Brasília. E ai de ti, Copacabana, quando ele sair de lá!

“Deus existe em si e foi gerado por si, para existir ele não necessita de nenhuma outra realidade”.

PS: Esta crônica vai para meu amigo e aniversariante de hoje, Pedro de Aguinaga, lá no Rio, também apóstolo de Spinoza.

Walter Navarro, Cafarnaum, 28 de Fevereiro de 2023.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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