28 de abril de 2024
Colunistas Walter Navarro

Nos dias de hoje os dias eram assim

Desconfio nunca ter visto um show de Ivan Lins ao vivo. Sempre gostei, mas, coisas da vida. Também nunca vi Tom Jobim tocar e Pelé jogar. Coisas da morte.
Acho que foi em maio de 2014. Ou teria sido janeiro de 2016? Sei que foi em Lisboa. Para descobrir, preciso rever as fotos e agora estou com preguiça e pressa, porque tic-tac, tic-tac, tic-tac para 2023 e o resto de nossas vidas.
Quem conhece a linda e louca capital portuguesa, certamente visitou e tomou umas no café “A Brasileira”, no Leblon de Lisboa, o Chiado, com CH de charme.
Brasileira por causa do café brasileiro, desde 1905.
Espaço deveras agradável, com mesas no exterior; vista para o não menos sedutor Hotel Borges e lojas chiques.
O bônus de “A Brasileira” é a estátua, em bronze, de seu “habitué” mais famoso, Fernando Pessoa. O poeta está eternamente sentado e foi em seu colo que deixei um volume de meu segundo livro, “Creme e Castigo”, para quem quisesse levar. Por onde andará meu Stephen Fry? No lixo, servindo de calço ou na poeira de alguma biblioteca? Jamais saberemos.
Bom, certa manhã querida, que os anos não trazem mais, lá estava eu, mui bem acompanhado quando, à minha frente, atravessou a rua, todo esbelto, Ivan Lins, em direção às vitrines.
Só consegui perceber que ele é alto; porque também estava muito bem acompanhado de uma loura monumental, daquelas de fechar o comércio e parar o trânsito da Rua Garrett.
Por que o Word sempre impõe Rua e Avenida em letras maiúsculas?
Por que estou me lembrando do Ivan Lins no apagar das luzes? Porque ele também cantou uma época tão sombria quanto esta. Aliás, o Brasil de hoje é que me lembrou o Ivan Lins de 1978, quando lançou seu clássico disco, “Nos Dias de Hoje”, que é um verso da canção “Cartomante”.
Ivan também pertencia ao Reino dos Cantores de Protesto, principalmente porque seu parceiro mais constante era o mestre Vítor Martins, ambos meio sumidos e beirando os 80 anos.
Vítor está para Ivan, como Aldir Blanc para João Bosco, Chico para Francis Hime, Vinicius para Tom Jobim e Paulo César Pinheiro para vários ídolos que já morreram ou não são mais os mesmos. Mais provável é que eu não seja o mesmo…
Todos escreveram coisas que matam o Walter Navarro de inveja, até hoje.
Por exemplo: “Nos dias de hoje é bom que se proteja, ofereça a face pra quem quer que seja. Nos dias de hoje esteja tranquilo, haja o que houver pense nos seus filhos”.
É 1978 em 2022 ou não? Quanto medo de avião, Virginia Wolf e Bicho Papão! Quanta insegurança!
“Não ande nos bares, esqueça os amigos, não pare nas praças, não corra perigo, não fale do medo que temos da vida, não ponha o dedo na nossa ferida”.
E não é que 2022 foi o ano da volta do não? Isso, numa época em que confirmamos: “vence na vida, quem diz sim”.
“Nos dias de hoje não lhes dê motivo porque na verdade eu te quero vivo. Tenha paciência, Deus está contigo, Deus está conosco até o pescoço”.
O cara está conosco até o pescoço e a gente rezando para ele agir através dos homens verdes… Não, marcianos não.
O negócio é torcer para que já esteja escrito, previsto por todas as videntes, pelas cartomantes. Que tudo esteja nas cartas, nas quatro linhas e nas quatro estrelas; no jogo dos búzios e nas profecias: “Cai o rei de Espadas. Cai o rei de Ouros. Cai o rei de Paus. Cai, não fica nada”.
Na esteira do conselho de Vítor e Ivan, “pense nos seus filhos”, a música mais bonita, do disco, quase uma “berceuse”, uma canção de ninar, “Aos Nossos Filhos”.
“Perdoem a cara amarrada. Perdoem a falta de abraço. Perdoem a falta de espaço. Perdoem por tantos perigos. Perdoem a falta de abrigo. Perdoem a falta de amigos. Perdoem a falta de folhas. Perdoem a falta de ar. Perdoem a falta de escolha. Os dias eram assim”.
A falta de abraço e ar, os perigos, não são por causa da Covid-19. Mas porque aqueles dias voltaram, na calada da noite, em plena luz do dia. Os dias estão assim ou estou delirando?
Mas…
“Quando passarem a limpo. Quando cortarem os laços, quando soltarem os cintos; façam a festa por mim. E quando lavarem a mágoa. E quando lavarem a alma. E quando lavarem a água; lavem os olhos por mim”.
Idolatradas e queridos, não sei o que vai acontecer daqui a pouco, amanhã ou nunca mais. Se eu não estiver por aqui, peço que cantem, em minha memória, mas sem rir, estes versos finais para quem não deixará filhos, apenas livros perdidos, em Lisboa ou Paris.
“Quando brotarem as flores, quando crescerem as matas, quando colherem os frutos, digam o gosto pra mim”. E se o gosto estiver numa caipirinha, melhor ainda. Feliz 2019!

PS1: Feliz aniversário, Portinari…

PS2: A ilustração de hoje, claro, é uma homenagem ao Pelé, não ao homem, mas ao Mito. A foto registra o momento exato em que o Rei “perdeu” a carteira, o iPhone e a caneta Montblanc.

Walter Navarro, Ituverava, 31 de Março, perdão, 29 de Dezembro de 1964, quer dizer, 2022.

Walter Navarro

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.

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