1 de maio de 2024
Colunistas Sylvia Belinky

Minha cadeira de balanço quebrou – Parte II

Seu Adão chegou e entrou para ver a cadeira. Minha expectativa era grande; afinal, eu tinha conversado com um montão de picaretas que ficam pelas esquinas dos bairros “bem” de São Paulo, todos capazes de restaurar essa cadeira… por uma fortuna, além de ninguém me dizer exatamente como… (Se eu tivesse um emoji aqui, eu poria aquela carinha com a boquinha plissada…)

Ele olha, diz que vai mesmo ter que “improvisar”. Tentamos fazer com que ela passasse pela porta da varanda, o que se revelou trabalho inglório: eu tinha esquecido que, por ser muito grande ela tinha ido parar lá porque a passamos por cima do muro.

Nesse meio tempo, eu que sou conversadeira pra caramba, começo a falar com ele sobre vacina, sobre o carro tão bem conservado – “tinindo” na verdade – o que certamente diz muito sobre quem é o dono e algo também para me apaziguar com relação a quem estava levando minha preciosidade…

Chamou minha atenção o fato de ele ser muito bem informado e ter um português perfeito, algo que é típico de quem lê bastante. Não me contive, comentei sobre a minha impressão e perguntei até que ano ele tinha estudado e ele responde que só havia terminado o fundamental, apesar de gostar muito de estudar e de ter sido um bom aluno.

Pergunto o porquê de ele ter deixado a escola tão cedo, considerando que fosse um bom aluno e gostasse de estudar e ele me responde:

“Só que a perseguição, que sofri na escola, foi tão grande por eu ser negro – tudo que acontecia por lá eu era o culpado – e isso vinha inclusive da professora, que acabei desistindo.”

“Mas, a escola era onde?”

“Na Vila Mariana; uma escola de Estado que continua lá até hoje” me respondeu ele, sem raiva alguma na voz.

Aí, eu não resisti: nessa mesma época (ele é mais novo do que eu apenas três anos), eu havia terminado o primeiro científico, como era dividido o colegial na época, e tinha repetido. Prestei segunda época e, mesmo assim, não consegui passar: nunca tive o menor “pendor” para química e física e meu pai me disse que procurasse um colégio de Estado porque ele não pagaria Colégio Rio Branco de novo. Prestei exame no Fernão Dias Pais, em Pinheiros, entrei e estava cursando à noite, que era o período que dispunha de vaga.

Então, o diretor da escola resolveu chamar toda a turma do curso noturno no pátio, para dar um aviso.

Todos reunidos e ele vocifera com um:

“Você aí, negão! Cala boca!”

Passa um pouco e ele vira para outro rapaz e diz:

“Você aí, seu judeu, cala boca ou vai expulso da escola!”

E eu, na mesma hora, levanto o braço. Ele olha para mim com raiva e eu:

“Quero saber se ele será expulso porque é judeu…”

“A senhora cala a sua boca!”

“Não, eu retruquei. Preciso saber se ele vai ser expulso porque é judeu; porque se for, eu também serei, pois sou judia. Então quero saber!”

Furibundo, roxo de raiva, ele berra no microfone, diante de todos os alunos, nessa altura silenciosos:

“A senhora está expulsa da escola!”

Não me fiz de rogada, saí do pátio, peguei minhas coisas e fui embora.

Chegando em casa, meu pai estranhou e perguntou o porquê de eu estar de volta tão cedo. e a minha resposta foi:

“Acho que fui expulsa da escola por ser judia…”

Para tremendo azar daquele energúmeno diretor de um Colégio de Estado, eu era a pessoa errada (para ele) no lugar certo: minha família era extremamente conhecida na época por conta da televisão e dos programas sobre Monteiro Lobato e, para piorar as coisas, o Secretário da Educação do Estado também era judeu e amigo da família…

Eu voltei para a escola depois de 15 dias após a expulsão desse diretor, devidamente chamado a se explicar com o senhor secretário.

De certa forma, senti como se tivesse “vingado” o senhor Adão por toda a humilhação e injustiça, o que não é fato, é claro, mas precisei contar a ele, mostrar que nem todos os brancos são iguais…

Sei lá por que resolvi contar isso aqui mas… a cadeira ficou perfeita, está linda e sólida!

Em tempo: o filho do senhor Adão está fazendo a segunda faculdade com todas as despesas pagas pelo seu empregador, que está investindo muito nele.

É. Os tempos mudam e os brancos não são mesmo todos iguais.

Sylvia Marcia Belinky

Tradutora do inglês, do francês (juramentada), do italiano e do espanhol. Pelas origens, deveria ser também do russo e do alemão. Sou conciliadora no fórum de Pinheiros há mais de 12 anos e ajudo as pessoas a "falarem a mesma língua", traduzindo o que querem dizer: estranhamente, depois de se separarem ou brigarem, deixam de falar o mesmo idioma... Adoro essa atividade, que me transformou em uma pessoa muito melhor! Curto muito escrever: acho que isso é herança familiar... De resto, para mim, as pessoas sempre valem a pena - só não tenho a menor contemplação com a burrice!

Tradutora do inglês, do francês (juramentada), do italiano e do espanhol. Pelas origens, deveria ser também do russo e do alemão. Sou conciliadora no fórum de Pinheiros há mais de 12 anos e ajudo as pessoas a "falarem a mesma língua", traduzindo o que querem dizer: estranhamente, depois de se separarem ou brigarem, deixam de falar o mesmo idioma... Adoro essa atividade, que me transformou em uma pessoa muito melhor! Curto muito escrever: acho que isso é herança familiar... De resto, para mim, as pessoas sempre valem a pena - só não tenho a menor contemplação com a burrice!

2 Comentários

  • Adão Alcides 5 de fevereiro de 2022

    Sem palavras pra expressar minha gratidão
    Simplesmente obrigado!

  • Josefa Francisca da Silva 8 de fevereiro de 2022

    Que história linda !
    Esperadoura.

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