8 de maio de 2024
Cinema

O show mais Beatle de Paul

N.E.: excepcionalmente, nesta semana, não poderia deixar de publicar o post com o comentário sobre o show do ídolo Paul McCartney.

O artista faz a mais profunda viagem a seu passado, e leva o povo ao delírio.

De todas as muitas, várias, dezenas de turnês de Paul McCartney desde 1970, esta Got Back, iniciada em abril de 2022 nos Estados Unidos, e que no Brasil inclui oito shows em Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, foi a mais Beatle. Sem sombra alguma de dúvida.

Vou falar de alguns dos pontos que provam isso – mas creio que um só já vale. No primeiro dos três shows em São Paulo, na noite da quinta-feira, 7 de dezembro, esse senhor de 81 anos de idade, um dos maiores artistas que já houve no planeta, ficou com a voz embargada, trêmula, a um milímetro do choro, ao cantar a música-declaração de amor a seu parceiro, amigo, camarada, cúmplice e depois desafeto dos tempos daquela banda antiga, extinta há 53 anos.

“I am holding back the tears no more” – não estou mais prendendo as lágrimas, diz, na quarta estrofe de “Here Today”, a canção que compôs pouco depois da morte de John Lennon, e lançou no disco Tug of War, de 1982, um dos mais belos de sua imensa, gloriosa e inigualável carreira. E, na última estrofe, insiste, não deixa dúvidas: “I really loved you”, ele declara para o sujeito com que assinou algumas das mais belas e memoráveis canções da música popular em toda história.

O sujeito que, 11 anos antes, em 1971, logo após o fim dos Beatles, exatamente no disco Imagine, o da canção utópica – paz & amor – mais amada do mundo, gravou uma canção cheia de ódio contra ele, dizendo coisas como

  • aqueles loucos estavam certos quando disseram que você tinha morrido;
  • uma face bonita pode durar um ano ou dois, mas logo vão ver o que você pode fazer;
  • a música que você faz é porcaria nos meus ouvidos;
  • você podia ter aprendido alguma coisa em todos aqueles anos;
  • como você consegue dormir?

Boa parte das mais de 40 mil pessoas que lotavam o Porcódromo, perdão, o Allianz Park, sabia direitinho as letras da maioria das canções que Paul McCartney apresentou, e cantavam junto com ele.

Não sei se muita gente ali percebeu que a emoção tomava conta do artista naquele momento, nem se haveria quem se lembrasse de “How do you sleep?”, a canção de ódio de Lennon a McCartney, mas, enquanto ao meu lado os olhos da Mary se enchiam de lágrimas, eu fiquei pensando nessa coisa de Paul ter devolvido o ódio de John com uma derramada canção de amor.

“Here Today” veio depois de uma absolutamente emocionante versão de “Blackbird”, com Paul tocando sozinho, sem mais nada, o que eu achei que era um ukelele havaiano mas Mary garantiu que era um brasileiríssimo cavaquinho.

Um pouco adiante, Paul apresentou uma versão bastante retrabalhada da complexa “Being for the benefit of Mr. Kite”, que encerrava o lado A de Sgt. Pepper’s naquela época em que ainda havia discos, e os discos daqueles tempos tinham dois lados. Demorei para identificar a música, em parte por problemas da minha audição, mas em parte por Paul de fato resolveu transcriar a canção, como Mary e eu gostamos de falar, usando um verbo de que alguns dos 418 críticos de música da Folha de S. Paulo gostavam muito.

A inclusão de “Being for the benefit of Mr. Kite” no repertório é mais uma homenagem a John, porque na gravação original é ele quem canta, e a música é claramente de autoria dele. Como todo fã dos Beatles está cansado de saber, a grande maioria das canções de Lennon-McCartney era de um ou de outro, e não dos dois juntos.

E, logo depois de mais essa homenagem a John, Paul pegou um ukelele – e todo fã de Paul sabe que, quando ele pega o ukelele, vai cantar “Something”, de George Harrisson.

Não sei como todo o bairro de Perdizes e mais a Pompeia e a Água Branca não ouviram minha voz berrando a letra de George. Mas é possível que o fato de Paul estar cantando, juntamente com umas 30 mil outras pessoas, ajude a explicar o fenômeno.

Bem, depois de “Something” teve “Ob-La-Di, Ob-La-Da”, “Get Back” (numa versão bastante transcriada, também), e as maravilhosas, definitivas “Let it Be” e “Hey Jude”.

No total, se minha conta estiver certa, foram 23 músicas dos Beatles, no total de 39. Mais da metade do show com músicas compostas durante os oito anos em que os Beatles gravaram; menos da metade com canções feitas nos últimos 53 anos.

Uma incrível quantidade de old Beatles songs, como diria o Caetano – e, como diz o Caetano, “oh, Lord, You know we ain’t that strong”. A mais pura verdade – Senhor, não somos tão fortes assim. Sem contar com o fato de que estamos todos velhinhos, oh, Lord. Caetano compôs e gravou a canção que começa com os versos “Woke up this morning / singing na old Beatles song / We’re not that strong, my Lord, / You know we ain’t that Strong” ali por 1971, 1972, ainda em seu exílio em Londres, pouco depois do fim dos Beatles, na época em que John Lennon desfiava seu ódio (ou saudade? ou despeito?) por Paul McCartney.

Oh, Lord! Já lá se vai mais de meio século. Todos nós ficamos meio século mais velhos – menos a bailarina de Chico, Edu e Paul McCartney! Euzinho, aqui, euzinho, especificamente, depois de “Hey, Jude” e de Paul e os músicos terem saído do palco, já estava absolutamente convencido de que aquele tinha sido meu último show de música em estádio. E foi um belo encerramento de um pedaço da vida, Mary diria um pouco depois: meu, terminar a etapa de shows em estádio com este de Paul McCartney é o que há, é o grand finale!

Mas Paul McCartney é foda, meu – e então, depois de ter concluído o show, e diante do fato óbvio de que ninguém se movia do lugar, nessa pantomima maluca que é a espera pelo bis, o cara voltou e cantou e tocou mais meia hora!

Quem mais, neste mundo doido de Deus e o diabo, faz um bis de meia hora?

O bis do cara começou com “I’ve got a feelin’” – uma das últimas parcerias de fato de Lennon e McCartney, a canção que John e Paul cantaram lado a lado no teto do prédio da Apple Corps em Londres, um apresentando uma estrofe, o outro a seguinte, depois os dois cantando ao mesmo tempo versos diferentes, e que todos nós vimos no filme Let it Be.

E aí, nos dois gigantescos telões verticais colocados cada um de um lado do palco, desaparece o Paul que estava ali no estádio e surgem as imagens de John no filme!

Lennon e McCartney cantando no Allianz Park, a um quilômetro da minha casa!

Não propriamente juntos. Nenhuma manobra de IA, nenhum espiritismo tecnológico para criar algo que nunca houve. Apenas e tão somente uma sacada esperta, inteligente, de colocar no telão e nos alto-falantes ora o que estava acontecendo ali ao vivo, ora um trecho do filme feito ao vivo no teto do prédio da Apple Corps no dia 30 de janeiro de 1969 – a última apresentação ao vivo dos Beatles.

Meu, que maravilha!

Minha cabeça voou para a época em que eu ouvia sem parar o recém-lançado disco Let it Be. Lembrei do apartamento na Rua Aurora, ali por 1971, que dividi por um tempo com o Maurício que nunca mais vi; lembrei da Derci, da Cleonice – e aí Paul atacou de “Birthday”, aquele troço barulhento demais.

Na verdade, achei o show um tanto barulhento demais. Sim, belíssimo, memorável, sensacional, emocionante – mas um tanto barulhento demais. Me pareceu que, ao gottar back para o passado profundo nesta que talvez seja sua última turnê mundial, Sir Paul quis mostrar que, aos 81 anos, não tem nada de MOR, middle of the road, o xingamento que 12 de cada 10 críticos de música lançavam sobre ele no início da Era Pós Beatles, ao mesmo tempo em que colocavam John no topo do panteão dos Grandes Líderes do Rock e da Revolução.

Felizmente, tudo o que é barulho demais passa, e então, depois um “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band (Reprise)” avisando que a noite estava chegando bem perto do fim, e de mais uma barulheira danada de chata de “Helter Skelter”

O cara veio com a Sinfonia Paul McCartney.

A sequência de canções que encerra o Abbey Road – “Golden Slumbers”, “Carry that Weight” e, finalmente, como todo disco, e show, e tudo na vida tem mesmo que acabar, “The End”.

And in the end. The love you take. Is equal to the love. You Make!

Paul e os músicos foram embora, mas – estranho! – as luzes do Allianz Park não se acenderam.

Mary falou que poderia haver novo bis. Argumentei que depois de “The End” não tem mais nada. The End!

As mais de 40 mil pessoas amontoadas ali pareciam estar pensando como a Mary, e não como eu: ninguém se movia.

Só depois de algum tempo é que vi as pessoas começando a sair de seus lugares. Mesmo assim, o povo da administração do estádio só acendeu as luzes depois que as escadas de saída ali daquele nosso lugar das cadeiras superiores – as grimpas – já estavam lotadas.

Nem quem cuida da administração do estádio acredita que um show de Paul McCartney possa acabar, chegar ao fim, The End.

O próprio cara tinha falado, antes de sair do palco e não voltar mais, naquela que era a primeira das três noites de São Paulo: “Até a próxima!”

O som era mais ou menos assim: eité a prócssíma!

Paul McCartney, definitivamente, não acredita que as turnês de Paul McCartney podem um dia ter um The End.

08/12/2023, o dia dos 43 anos da morte de John Lennon.

Fonte: 50 anos de textos

Sergio Vaz

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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