29 de abril de 2024
Cinema

O Enfermeiro da Noite / The Good Nurse

De: Tobias Lindholm, EUA, 2022

(Disponível na Netflix em maio de 2023.)

The Good Nurse, no Brasil O Enfermeiro da Noite, produção americana de 2022 baseada em fatos reais acontecidos entre 1996 e 2003, é um grande filme. Grande, belo filme.

O diretor Tobias Lindholm soube maravilhosamente aproveitar o talento imenso dos dois atores que fazem os papéis centrais, os da enfermeira Amy e do enfermeiro Charlie. Jessica Chastain e Eddie Redmayne, dois dos melhores atores de língua inglesa da atualidade, estão magníficos, impressionantemente perfeitos – e Tobias Lindholm e seu diretor de fotografia, Jody Lee Lipes, abusaram dos close-ups de seus rostos.

Tão extraordinário quanto a atuação de Jessica Chastain e Eddie Redmayne é o roteiro, assinado por Krysty Wilson-Cairns, com base no livro The Good Nurse de Charles Graeber. Não conheço o livro, mas dá para imaginar que é uma grande reportagem – uma narrativa dos eventos reais que foi resultado de muita, cuidadosa pesquisa, um tanto facilitada pelo fato de que o que aconteceu em torno dos enfermeiros Amy Loughren e Charlie Cullen foi dissecado pela imprensa até o último detalhe.

Sim, porque, embora Mary e eu não nos lembrássemos do caso, ele seguramente frequentou, com imensa assiduidade, as manchetes dos jornais – de papel, na internet e na TV – em 2003 e adiante.

Essa moça Krysty Wilson-Cairns fez um trabalho em tudo por tudo admirável, impressionante.

O roteiro do filme é um exemplo, uma lição ímpar de como tratar um caso real de imenso impacto, um escândalo perfeito para ser explorado de forma sensacionalista – de maneira absolutamente anti-sensacionalismo. De forma madura, séria, sóbria.

Impressionante.

Um grande, belo filme.

O duro é que é um daqueles bons filmes difíceis de se ver.

É muito, muito difícil de se ver este O Enfermeiro da Noite/The Good Nurse. Mesmo tendo os realizadores adotado uma abordagem mais discreta, mais cuidadosa, que foge das explicitudes, é uma história apavorante, chocante. Nenhum frade de pedra ficaria imune a eventos tão inimagináveis.

Eu, euzinho, estou cada vez mais distante dos frades de pedra. Cada vez menos capaz do tal “distanciamento brechtiano”. Mergulho na emoção dos personagens – e, se o filme é bom como este aqui, então, não tem jeito. Diante de histórias duras, sofro feito escravo nas galés romanas. E, diacho, como a história dessa moça Amy Loughren é dura.

Digo sempre que os filmes bons passam rapidamente, os filmes ruins demoram demais para passar. Pois é, mas vendo este belo filme – belo, mas mostrando fatos duros demais, apavorantes demais –, confesso que parei várias, várias vezes para ver quanto tempo faltava.

Parecia que aquele sofrimento não acabava nunca.

Um filme que opta pela discrição

The Good Nurse. O Enfermeiro da Noite.

O título brasileiro faz lembrar O Porteiro da Noite, o filme de Liliana Cavani de 1974 que se pretende escandaloso, pour épater les bourgeois. Exatamente o contrário deste filme aqui, que trata de uma história escandalosa sem fazer escândalo.

The Good Nurse é um filme que opta pela discrição, pelo tom menor.

E, depois de vê-lo, me ocorreu que foi uma decisão sábia dos exibidores brasileiros mudarem o título. “Nurse”, como tantas palavras que identificam profissão em Inglês – engineer, architect, counselour, lawyer, por exemplo – serve para os dois gêneros. Se traduzido literalmente, o título revelaria o gênero do personagem que é good nurse.

Penso agora, neste momento em que escrevo, um dia depois de ver o filme, que The Good Nurse foi escrito e realizado para ser visto por pessoas que não estavam cansadas de saber da história real envolvendo os enfermeiros Amy Loughren e Charlie Cullen.

O que é extraordinário, fantástico.

Uma abertura brilhante, a câmara parada

Tenho o maior respeito por filmes que começam bem, que logo de cara prendem a atenção – e demonstram para o espectador que é uma obra bem realizada.

A abertura de The Good Nurse é um brilho.

A tomada – um plano de conjunto, aquele que só não é tão amplo quanto o plano geral – mostra a porta de um quarto de hospital, como se a câmara estivesse no corredor. De tal forma que podemos ver os pés do paciente na cama. Um enfermeiro atende correndo ao alarme acionado pelo paciente – e imediatamente começa a gritar por ajuda.

A câmara fica parada, como se colocada num bom e firme tripé, no corredor do hospital, diante da porta do quarto.

Diversas pessoas vão chegando ao quarto. A movimentação é frenética – tenta-se bombear o coração do paciente para reanimá-lo. Tudo é absolutamente febril, nervoso, urgente. Ouvimos as ordens do médico, os ruídos, as vozes.

Só a câmara não é febril, nervosa, urgente.

Os créditos iniciais vão rolando em cima das cenas. A câmara fica fixa, absolutamente parada no mesmo lugar. Mas, a partir de um determinado momento, vai fazendo um zoom para a frente, um zoom muito suave, em direção ao rosto do enfermeiro que chegou primeiro ao quarto atendendo ao alarme e imediatamente pediu ajuda.

Todo o esforço da equipe médica é em vão: o paciente morre.

Quando o zoom está se completando, e a câmara mostra quase em close o perfil de Eddie Redmayne (na foto do alto), corta, e vem o título do filme, letras brancas em fundo negro: The Good Nurse.

Como se o personagem de Eddie Redmayne, Charlie Cullen, fosse the good nurse de que fala o título.

Um letreiro nos informa que aquilo aconteceu na Pensilvânia, em 1996.

Uma enfermeira competente, de vida duríssima

E a partir daí, o que se mostra é a enfermeira Amy. Um letreiro nos diz que agora estamos em Nova Jersey, em 2003.

Quando o filme está com uns 20 minutos, por aí, o espectador já está evidente, clara, obviamente fascinado por aquela mulher que é tão competente, e tão miseravelmente tratada pela vida. Tem já uma imensa simpatia por ela, torce por ela, sofre com o sofrimento dela.

Amy tem uma grave condição cardíaca. Até anotei o nome, embora ele não me diga nada – cardiomiopatia. O médico diz que ela não está nada, nada bem. Que precisa entrar na fila de transplante de coração o mais rapidamente possível. Mas Amy não tem ainda plano de saúde, que só passará a valer, por ela estar trabalhando em um bom hospital, daí a uns seis meses.

Ela não pode revelar ao hospital em que trabalha que tem um problema grave de saúde, porque, se revelasse, muito provavelmente seria demitida. E então tem que continuar trabalhando duro – e assim se expondo à possibilidade de ter um ataque cardíaco fulminante, ou um AVC.

Tem duas filhas para cuidar, a mais velha de uns sete anos, a mais nova de uns quatro. E não tem ninguém no mundo que possa ajudá-la – um irmão, uma tia, uma cunhada. Nada, nada, nada. Do pai das meninas, não se fala absolutamente nada.

O médico diz que ela precisaria parar de trabalhar. Mas como, se ela não tem dinheiro guardado, não tem o seguro saúde?

O filme está com 12 dos seus 121 minutos quando Amy vê Charlie pela primeira vez – a chefe havia avisado que ela passaria a ter ajuda no turno da noite, pois um enfermeiro havia sido contratado, experiente, com passagem por diversos hospitais.

O rapaz se revela competente, aplicado – e um bom colega. Ajuda Amy em todas as tarefas. Vão conversando, se conhecendo, sabendo coisas da vida um do outro. Ele conta que tem duas filhas, mas, depois da separação, a ex-mulher não tem permitido que ele visite as meninas.

Charlie passa a visitar a casa de Amy; se mostra jeitoso com as filhas dela, Alex, de uns 7 anos, e Maya, de uns 4 ou 5 (os papéis de Alix West Lefler e Devyn McDowell).

Fica sabendo do problema de saúde dela, promete ajudá-la em tudo o que for possível.

Uma paciente da UTI por quem Amy havia se afeiçoado, Ana Martinez (Judith Delgado), morre. Algum tempo depois, outra paciente, Kelly Anderson (Anjelica Bosboom) morre também.

O autor do livro colaborou com a roteirista

Como é de praxe em filmes baseados em histórias reais, ao término da narrativa, antes dos créditos finais, letreiros informam o espectador sobre o que aconteceu com os personagens centrais depois daqueles fatos mostrados ali. As informações são muito impressionantes, muito chocantes – mas, obviamente, adiantá-las aqui seria um absoluto, inaceitável spoiler.

Não é spoiler, de forma alguma, porém, afirmar que o filme deixa muito mal, mas muito mal os hospitais dos Estados Unidos, o país mais rico que já houve neste planeta.

Também não é spoiler registrar que, nos créditos finais, embora em letrinha bem pequena, os realizadores agradecem a colaboração não apenas de Amy Loughren mas também de suas filhas, Alex e Maya, e dos policiais de Nova Jersey Danny Baldwin e Tim Braun (interpretados, no filme, por Noah Emmerich e Nnamdi Asomugha, respectivamente, na foto acima).

Alex devia estar com uns 26 anos quando o filme foi lançado, em 2022, e a caçula Maya, com uns 23, 24. Dá seguramente para imaginar que Amy foi ouvida pelos realizadores – assim como por Charles Graeber, o autor do livro em que a roteirista Krysty Wilson-Cairns se baseou.

Graeber teve encontros com a roteirista, colaborou com ela, passou para ela o material que coletou para escrever sobre o caso.

Antes de se tornar jornalista, Charles Graeber estudou Medicina, o que deve ter ajudado no trabalho de pesquisa do caso envolvendo os enfermeiros Amy Loughren e Charles Cullen. Como jornalista, escreveu para várias publicações importantes – Wired, GQ, The New Yorker, Outside e The New York Times. Foi para a revista New Yorker que ele escreveu sobre o caso dos enfermeiros, em 2007; em seguida, aprofundou as pesquisas sobre o caso, e em 2013 lançou o livro, que tem um título gigantesco: The Good Nurse: A True Story of Medicine, Madness, and Murder – uma história verdadeira de medicina, loucura e assassinato.

O New York Times escreveu que o livro “traz à mente In Cold Blood”, A Sangue Frio, o espetacular livro de Truman Capote que relata com todos os detalhes o assalto a uma fazenda no Kansas em 1959, o brutal assassinato dos quatro membros da família e a prisão dos assassinos, até sua execução.

Além de colaborar com a roteirista Krysty Wilson-Cairns, Charles Graeber foi um dos produtores de um documentário sobre o mesmo caso, também lançado pela Netflix no mesmo ano deste The Good Nurse, que no Brasil teve o título de Em Busca do Enfermeiro da Noite.

Resenhas do livro, na Wikipedia e no site da Amazon, indicam o óbvio: Charles Graeber ouviu – seguramente por horas e horas – os depoimentos de Amy Loughren e também dos policiais Danny Baldwin e Tim Braun.

Com base no que vi nas resenhas do livro, dá para afirmar com segurança que foi da roteirista Krysty Wilson-Cairns a idéia – maravilhosa – de tornar Amy Loughren a protagonista da narrativa, de centrar as atenções nela, mais do que em Charles Cullen.

Na minha opinião, essa idéia, essa opção foi decisiva para a grandeza deste belo filme.

Jessica Chastain merecia ganhar um monte de prêmios

Acho muito estranho que Jessica Chastain não tenha recebido uma montanha de indicações a melhor atriz pela fantástica, extraordinária interpretação dela como essa enfermeira de vida tão dura. Teve apenas uma indicação, nos Satellite Awards. Eddie Redmayne também teve indicação ao Satellite – e ao Bafta, ao Globo de Ouro e ao prêmio do sindicato dos atores, o Screen Actors Guild Awards.

The Good Nurse foi o primeiro longa-metragem em língua inglesa do diretor dinamarquês Tobias Lindholm. Sua filmografia como diretor é bem pequena: são apenas sete títulos, incluindo aí dois episódios da série Mindhunter, de 2017, a história real de dois agentes do FBI que nos anos 1970 entrevistaram diversos criminosos condenados e presos, e criaram a Unidade de Ciência do Comportamento.

Tobias Lindholm tem mais títulos como roteirista do que como diretor. Ele assina os roteiros de dois filmes importantes dirigidos pelo ótimo Thomas Vinterberg, A Caça (2012) e Druk – Mais Uma Rodada (2020).

Dois detalhinhos.

Um deles é um fato: o respeitado diretor Darren Aronofsky, de Cisne Negro (2010) e A Baleia (2022) é um dos produtores do filme.

Uma opinião, um chute: a gente deveria prestar atenção a essa garotinha Alix West Lefler, que faz Alex, a filha mais velha de Amy. A menina é linda, mas, muito mais importante que isso, esbanja talento. Estava com 11 anos quando The Good Nurse foi lançado, e tem já 9 títulos no currículo. Fiquei impressionado com ela – tem tudo para ter uma bela carreira.

Anotação em maio de 2023

O Enfermeiro da Noite/The Good Nurse

De Tobias Lindholm, EUA, 2022

Com Jessica Chastain (Amy Loughren),

Eddie Redmayne (Charlie Cullen)

e Devyn McDowell (Maya Loughren, a filha mais velha de Amy), Alix West Lefler (Alex Loughren, a filha caçula), Nnamdi Asomugha (Danny Baldwin, policial), Noah Emmerich (Tim Braun, policial), Kim Dickens (Linda Garran, gerente de riscos do Hospital Parkfield), Malik Yoba (Sam Johnson, chefe de polícia), Maria Dizzia (Lori, a enfermeira amiga de Amy), Judith Delgado (Ana Martinez, paciente), Jesus-Papoleto Melendez (Sam Martinez, o marido de Ana), Anjelica Bosboom (Kelly Anderson, paciente), Gabe Fazio (Tom Anderson, o marido de Kelly)

Roteiro Krysty Wilson-Cairns

Baseado no livro “The Good Nurse”, de Charles Graeber

Fotografia Jody Lee Lipes       

Música Biosphere

Montagem Adam Nielsen       

Casting Lindsay Graham , Mary Vernieu    

Desenho de produção Shane Valentino

Figurinos Amy Westcott

Produção Darren Aronofsky, Scott Franklin, Michael Jackman, FilmNation Entertainment, Protozoa Pictures.

Cor, 121 min (2h01)

Fonte: 50 anos de filmes

Sergio Vaz

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

Jornalista, ex-diretor-executivo do Jornal Estado de São Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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