4 de outubro de 2025
Cinema

Claudia

A beleza era tão acachapante que muita gente nem notava o talento incrível. Por Sérgio Vaz

Não me lembro de quantos e quais filmes de Claudia eu havia visto antes, mas não dá para esquecer, de jeito algum, como ela deixou zonzo o adolescente Sérgio Vaz quando ele a viu, no Cine Tupi, em Belo Horizonte, em Vagas Estrelas da Ursa.

Foi no dia 9 de dezembro de 1965. Voltei ao Cine Tupi no dia 14, vi de novo, e de novo saí zonzo – não apenas com o filme, mas com a beleza ofuscante, louca, desvairada, absurda, de Sandra Dawson, a personagem central.

Sei das datas porque anotei no meu caderno de cinema, ainda o primeiro, de 1962 a 1965. (O segundo duraria de 1966 até 1988.) Verba volant, scripta manent, conforme aprendi aí na época dos meus dois cadernos de cinema – o que, em português castiço, quer dizer “se não anotou, dançou”.

Há coisas, no entanto, que, por motivos que jamais compreenderemos, ficam na memória da gente, não desgrudam, mesmo que não tenha anotado na hora. Guardei para todo o sempre, até que a demência tome conta, a frase que Gianni-Jean Sorel dizia para ela: – “Tu sei una piccola borghesa, Sandra, ma io no”.

Só voltaria a rever Vaghe Stelle dell’Orsa… 45 anos depois, no dia 10 de abril de 2010, quando Claudia já estava com 72 anos, apenas um pouquinho menos do que tenho hoje. Já estava aposentado, com tempo para escrever longamente sobre os filmes no meu site, e comecei assim um texto imenso:

“Algumas das primeiras impressões ao rever pela primeira vez, depois de quatro décadas, Vagas Estrelas da Ursa, o filme de Visconti de 1965: que beleza de filme; que beleza de imagens; como o filme não envelheceu absolutamente nada; como o conde marxista homossexual de talento extraordinário adorava rostos bonitos, de homens e mulheres; e, meu Deus do céu e também da terra, que grande interpretação de Claudia Cardinale, e como ela era acachapantemente bela.

“Talvez este seja o filme em que ela, aos 25 aninhos de idade, está mais esplendorosamente bela – mais que em A Moça da Valise, de Valerio Zurilini, de 1961, mais ainda que em Oito e Meio, de Fellini, de 1963, mais ainda, se é que isso é possível, que em O Leopardo, o filme imediatamente anterior de Visconti, de 1963.

“E talvez esta seja a melhor interpretação de toda a sua carreira.”

Mais adiante, escrevi isto aqui sobre o filme que o adolescente com o mesmo nome meu havia visto naquela outra encadernação:

“O ponto de genialidade, de maestria, é que a narrativa avança mais pelo não expresso, pelo não explícito. Há muito mais ambigüidade, dúvida, névoa, bruma, tonalidades de cinza, do que explicitudes, clarezas, preto no branco. É um tom mais de Dom Casmurro do que das narrativas em que tudo é dito. Me parece que a intenção é exatamente deixar a dúvida na cabeça do espectador, ao fim de tudo: houve ou não houve, de fato, o que muitos dizem que houve e Sandra nega?

‘E, para isso, para que o filme funcione, muito depende da interpretação de Claudia Cardinale. E é aí que ela brilha.”

Mais adiante, falando do momento em que Gianni-Jean Sorel aparece:

“As expressões de susto e fascinação são claras, são evidentes, nos grandes olhos de Claudia Cardinale, na sua testa franzida, nos movimentos às vezes bruscos, nervosos. É uma interpretação brilhante.”

***

Não são poucas as atrizes de beleza acachapante demais da conta que tiveram dificuldade em ver reconhecido seu talento dramático – Marilyn e seu esforço no Actors Studio que o digam. É verdade que Claudia venceu dois prêmios David di Donatello, o Oscar italiano, mas foi por dois filmes menores, O Dia da Coruja (1968) e Uma Noiva para Dois (1971). Bem mais tarde, em 1997, ganharia um David di Donatello especial, honorífico, pelo conjunto da obra – aquela velha forma de as academias pedirem desculpas por terem sido injustas com o artista ao longo dos anos.

Mas o fato é que aquela minha afirmação de que talvez a interpretação dela de Sandra em Vaghe Stelle dell’Orsa… é bastante irresponsável. Quem sou eu para saber qual foi a melhor interpretação de Claudia? Não vi tantos filmes dela assim. Uns 10, talvez 12, talvez 15. Creio que não chega a 20. Muito pouco – a filmografia dela no IMDb tem 128 títulos.

Não vi sequer 20 dos filmes dela – e conheço muito pouco sobre sua vida. Concluí isso pouco depois de saber da morte dela, neste 23 de setembro de tantos, tantos, tantos fatos, e pensar na possibilidade de escrever umas mal traçadas.

Diacho: eu, um absoluto apaixonado por filmes, um admirador de Claudia desde que era um adolescente que via mais de 120 filmes por ano, que depois de velho tem um site de filmes, sei, a rigor, duas informações sobre Claudia Cardinale: que ela é tunisiana e foi casada com o poderoso produtor Franco Cristaldi.

(Não sabia, vejo só agora: nasceu em Túnis quando a Tunísia era um protetorado francês, filha de pais nascidos na Tunísia descendentes de famílias sicilianas. E, sim, foi casada com Franco Cristaldi de 1966 a 1975, e deu a ele dois filhos. Não se casou de novo no papel.)

Que nasceu na Tunísia, e foi casada com Franco Cristaldi.

Não sou do tipo que não tem interesse pela vida pessoal dos artistas. Tenho, sim. Acho interessante e até importante conhecer fatos da vida pessoal.

E aí é que está: pelo jeito, Claudia era uma mulher que não transformava sua vida privada em assunto de coluna de fofoca, em tema de tablóide, imprensa marrom.

Pelo jeito. Parece. Não posso afirmar: não sei nada sobre Claudia – a não ser o que ela mostrou nos 10, 12, talvez até 20 filmes que vi com ela.

***

Há tempos, tempos, tempos, penso em rever Era Uma Vez no Oeste. É uma das muitíssimas lacunas, falhas, do meu + de 50 Anos de Filmes. A beleza de Claudia é acachapante em todos os filmes, é claro… Mas me parece que ela é especialmente brilhante, assim como em Vagas Estrelas da Ursa, no western que Sergio Leone fez em 1968.

Clint Eastwood, um dos melhores diretores de cinema de todos os tempos, sempre disse que seus mestres foram Don Siegel e Sergio Leone.

Na minha opinião, um dos personagens mais fascinantes do cinema que jamais aparecem na tela se chama Claudia, a mulher de Bill Munny, o sujeito que foi um pistoleiro, um assassino, e, por amor à mulher, transformou-se em um pacato fazendeiro, em Os Imperdoáveis/Unforgiven, a obra-prima que Clint lançou em 1992.

Tenho quase absoluta certeza de que Clint deu o nome de Claudia à mulher do seu personagem Bill Munny em homenagem à atriz que brilhou no filme de seu mestre Sergio Leone.

Sempre que ouço “Claudia’s Theme”, a melodia incrivelmente bela que Clint compôs com Lennie Niehaus para a personagem que não aparece na tela, penso na beleza de Claudia Cardinale.

Fonte: 50 anos de filmes https://50anosdetextos.com.br/2025/claudia/

N.E.: O vídeo a seguir é em homenagem a esta grande atriz:

Sergio Vaz

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.

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