De: Selman Nacar, criador, roteirista e diretor, Turquia, 2025.
(Disponível na Netflix em 8/2025.)
Ao contar a fascinante história do encontro de duas mulheres em tudo por tudo diferentes uma da outra, na Turquia de hoje em dia, a série A Enciclopédia de Istambul/Istanbul Ansiklopedisi, de 2025, nos brinda com uma bela declaração de amor à cidade milenar na fronteira entre dois continentes, dois mundos – e um panorama amplo, forte, da profunda divisão que marca a sociedade daquele país que até há pouco era moderno, alegre, colorido, vibrante, e há cerca de 20 anos tem um governo retrógrado, reacionário, que ameaça voltar atrás na História, rumo às trevas medievais.
A Enciclopédia de Istambul é uma bela série sobre relações afetivas, amizade, solidariedade – mas, o tempo todo, a situação política e social da Turquia está presente. A realidade que é mostrada é essencialmente turca. A história não poderia se passar em outro país, eu creio.
Nesrin, competente, bem-sucedida cirurgiã, consegue uma vaga em um grande hospital da França, mas, para obter o visto de trabalho, tem que se submeter a um interrogatório de um burocrata da embaixada francesa. Ele pergunta o motivo de ela desejar deixar seu país:
– “Quero prosseguir minha carreira na França. Não quero mais morar na Turquia. Não consigo mais morar aqui devido ao declínio das condições culturais, sociais, econômicas e profissionais, principalmente nos últimos dez anos.”
Essa declaração fortíssima, duríssima, vem no terceiro dos oito episódios da série, de cerca de 40 minutos cada. Nesrin, uma mulher aí de uns 50 anos (o papel de Canan Erguder, ótima atriz), havia acolhido em seu confortável apartamento em Istambul a jovem Zehra (Helin Kandemir, também ótima), garota aí de uns 20 anos, 20 e pouquinhos.
Zehra é filha da maior amiga que Nesrin teve na vida, e chegara de sua distante cidade natal para fazer faculdade na grande metrópole. Apesar de vir do interior profundo, chegara com todo o jeito de garota moderna, descolada, avançada, como tantos e tantos jovens de Istambul, iguais a tantos e tantos jovens de Paris, Londres, Nova York, Rio de Janeiro. Mas, na verdade – e isso vai sendo apresentado clarissimamente ao espectador desde o primeiro episódio –, Zehra é a contradição ambulante, é a expressão mais óbvia da divisão que está cada vez mais nítida na Turquia, segundo mostram os filmes e as séries feitas lá. Às escondidas, para não ser vista pela amiga da mãe que a recebeu, para não ser vista pelos colegas da Faculdade de Arquitetura, todos os dias Zehra vai para um lugar fechado, tira da mochila o hijab e um tapetinho e se ajoelha para orar.
Bem no início da série, a garota não encosta completamente a porta do quarto ocupado por ela, e, pela fresta, Nasrin a observa coberta pelo véu e ajoelhada no chão. Zehra não percebe que é vista, e continua escondendo a condição de muçulmana praticante da mulher que a hospeda – e de quase todo o mundo a seu redor.
Em um momento crucial da história – quando as duas mulheres estão viajando de carro de Istambul a Amasya, a cidade natal de ambas, porque a avó da moça está muito doente –, Zehra vai ao banheiro do restaurante em que pararam para jantar, demora-se um tanto, angustia-se muito, e em seguida reaparece à mesa diante de Nesrin usando o véu.
É impressionante o que a cirurgiã madura que está para abandonar seu país diz para a jovem filha de sua antiga amiga que havia se tornado ela própria uma grande amiga:
– “As coisas são assim neste país, Zehra. Algumas pessoas são discriminadas por usarem hijab, outras são discriminadas por não usarem. Mas geralmente são discriminadas é por serem mulheres.”

Os diálogos desta série são maravilhosos. Há diálogos sérios, seriíssimos, sobre questões afetivas, emocionais, existenciais – e sobre as questões todas da conjuntura, do momento que a Turquia atravessa, desde 2003, quando Recep Tayyip Erdoğan assumiu o cargo de primeiro-ministro, e não deixou mais o poder – em 2014, tornou-se presidente da República, e está lá até hoje, 2025, o ano de lançamento da série.
(Essas datas deixam muito claro o período a que Nesrin se refere naquela declaração fantástica – “Não consigo mais morar aqui devido ao declínio das condições culturais, sociais, econômicas e profissionais, principalmente nos últimos dez anos.”
Diálogos maravilhosos, situações que mexem com o espectador. Quando Zehra assume o hijab diante de Nasrin, já estamos no sexto dos oito episódios da série. No sétimo, há uma sequência esplêndida, lindamente encenada, em que essa jovem atriz Helin Kandemir brilha especialmente. Zehra havia conseguido um trabalho em meio período, que não atrapalharia seus estudos na faculdade – mas a empresa exige que ela faça uma carteira de identidade atualizada.
A moça vai a um fotógrafo profissional para fazer a foto para o documento usando um gorro – nem o véu religioso, nem os cabelos à vista contra os preceitos da religião. O fotógrafo diz que aquilo o Estado não permite – ou bem ela usa o hijab, ou não usa nada.
A pobre Zehra sai de lá com duas séries de fotos – uma com o hijab, a outra sem. Angustiada, desabafa com a amiga da mãe que a acolheu: – “Eu não tenho identidade. Até decidir quem sou, não tenho nem sequer uma identidade.”
Nasrin se aproxima dela, faz carinho no rosto dela, diz que quer ajudar, pergunta o que ela quer. A garota, em pranto: – “Eu não sei! Eu queria saber! Tudo seria tão fácil! Quem me dera eu soubesse!”

Bem. Relatei momentos importantes, fortes, impactantes da série – mas creio que, se lesse até aqui, meu amigo Valdir Sanches diria: – “Tá, mas qual é a história?”
Tem que ter uma sinopse. Um resumo da história, diacho.
O resumo do IMDb é bem sintético: “Uma estudante viaja para Istambul e se hospeda na casa da melhor amiga de sua mãe, agora afastada dela, mas elas têm dificuldades devido às diferenças culturais”.
Eis a sinopse do site Adoro Cinema: “Em A Enciclopédia de Istambul, a vida de duas mulheres de gerações, crenças e personalidades totalmente diferentes muda diante do caos e das possibilidades que a metrópole apresenta. Na série turca, Zehra (Helin Kandemir) vai morar com uma amiga de sua mãe em Istambul para fazer faculdade e realizar seus sonhos de viver na capital. (Um errinho: a capital é Ancara…) Ela é recebida de braços abertos por Nesrin (Canan Ergüder), mas enquanto Zehra está deslumbrada e deseja encontrar sua verdadeira identidade na cidade grande, tudo o que a senhora quer é deixar sua vida em Istambul para trás, junto com todo o caos de seu passado. Juntas, elas enfrentam construções e quebras de expectativas entre conversas profundas, conflitos, relacionamentos e as trivialidades da rotina.”
Um dos pontos mais importantes da trama, talvez o mais fundamental de todos, é a relação entre Nesrin e Aylin, a mãe de Zehra – e sobre ela a série vai entregando as informações bem aos poucos. A própria Aylin (o papel de Melisa Sözen) só vai aparecer no sexto dos oito episódios, quando a filha vai para Amasya, atendendo ao chamado da mãe, por causa da doença da avó – e, sem avisar, inesperadamente, Nesrin vai junto.
O que se mostra, desde bem o início, é que as duas haviam sido amicíssimas, daquele tipo que antigamente as pessoas chamavam de unha e carne, e na linguagem das garotas de 12 anos, como minha neta linda e fofa, são best friends ever. Viviam grudadas uma na outra, não se largavam.
No entanto, havia muito tempo que não se viam mais. Muito, muito tempo – 19 anos, para ser exato. O número é mencionado por Nesrin logo no primeiro diálogo entre ela e a filha da amiga, no iniciozinho do primeiro episódio.
A série abre com tomadas da bela jovem desembarcando ao aeroporto de Istambul, depois no ônibus rumo à área central da cidade, enquanto vão rolando os créditos iniciais. Ao final dos créditos, a médica Nesrin e a estudante Zehra estão frente a frente em um restaurante simpático, agradável – mas que a garota definirá como chato, certamente por ser calmo, tranquilo.
Ela agradece à amiga da mãe por recebê-la em sua casa,
e Nesrin diz que fica feliz por estarem juntas: – “Acho que teremos dias incríveis”. E falam, é claro, da relação entre Nesrin e Aylin. – “ Você sabe por que não nos falamos mais?”, a médica pergunta. – “É um assunto proibido”, responde a garota. – “Ela nunca falou nisso?”, insiste a médica. – “Ela me odeia tanto assim, mas deixa você ficar comigo?”
Zehra confessa então que havia mentido, nos contatos anteriores, em que ela perguntara se poderia se hospedar na casa de Nesrin. Sua mãe não sabia disso – achava que ela ficaria em um alojamento para estudantes, ou algo assim.
– “Esse assunto surgiu cedo demais”, diz Zehra, depois de confessar que havia mentido. – “Mas talvez seja melhor falar disso logo, para não ficar pesando na minha consciência. Não consegui um quarto para alugar. Os preços aqui são iguais aos de Miami. (…) Eu não tive outra opção.”
E Zehra ainda demonstra saber perfeitamente que tinha havido um rompimento entre as duas antigas amigas-irmãs: – “Achou mesmo que minha mãe me deixaria ficar na sua casa?”
Depois que as duas chegam à casa de Nesrin, e ela dá para a garota cópia da chave e um cartão do transporte metropolitano da cidade, diz, com firmeza: – “Amanhã você vai ligar para a sua mãe e contar tudo. Senão, não posso te deixar ficar aqui.”

O espectador fica sem saber o motivo daquele afastamento tão absolutamente radical entre as duas mulheres – e a série tem mesmo a intenção de provocar a dúvida, a curiosidade do espectador. Confesso que cheguei a pensar, enquanto via a série, que poderia ter havido uma paixão, uma ligação sexual entre as duas, e esse teria sido o motivo para o rompimento. Não que Nesrin pareça homossexual, de forma algumas – ela não se casou, não teve filhos, mas tem um namorado, no início da série, e depois surge um outro. Mas fiquei com aquilo na cabeça – e Mary também achou que teria lógica.
Só no sexto episódio, quando as duas mulheres se vêem pela primeira vez depois de 19 anos, e se confrontam, e expõem seus sentimentos – em sequências arrebatadoras, impressionantes – é que o espectador fica sabendo o que causou o rompimento entre as duas. Obviamente, revelar isso seria um absurdo spoiler para quem ainda não viu a série.

Zehra não encontra coragem para fazer o que Nesrin havia pedido. Não consegue contar para a mãe que estava hospedada na casa da mulher que havia sido sua maior amiga na vida – e que agora ela não queria ver mais, de jeito algum.
Vamos vendo os primeiros dias de Zehra na faculdade. Por um desses acasos de que são feitas as histórias dos romances, dos filmes e da vida real, de cara, na primeira aula, senta-se ao lado dela um garotão simpático, legal, Harun (Kaan Miraç Sezen), que se tornará um grande amigo da moça interiorana e a acolherá no seu grupo mais próximo, formado por ele, duas moças e um outro rapaz. (Não consegui gravar o nome dos três, mas eles serão personagens importantes, sempre presentes no novo dia a dia de Zehra na grande metrópole.)
Paralelamente, vamos seguindo também o dia a dia de Nesrin, seus preparativos para enfrentar os processos burocráticos para a mudança para a França, as aulas de francês com um professor bonitão que se mostra interessado nela, Louis (Grégory Montel), as discussões com o namorado Serdar (Tolga Tekin), numa relação que está chegando ao fim, e seus duros problemas com a irmã, Emel (Nezaket Erden), uma cantora de comportamento imprevisível, talvez viciada em alguma droga, e a mãe que tem pouco contato com a realidade que a cerca (o papel, creio, de Müjde Ar).
Passados alguns dias, Nesrin cobra de novo de Zehra se ela já conversou com a mãe. Em uma atitude despropositada, de adolescente imatura, irresponsável, a garota faz a mala e sai do conforto da casa – apesar dos pedidos da médica para que ela não faça aquilo, que as duas tentem resolver a situação de forma civilizada, adulta.
Enfrenta uma barra muito pesada durante um ou dois dias, perdida na metrópole – mas acaba sendo socorrida por uma colega muçulmana praticante, sempre de véu e roupas cobrindo cada milímetro do corpo, Fatma (Zehra Durgut).
Nesrin tentará de tudo para levá-la de volta para sua casa. Vai demorar bastante.
E chega de narrar eventos da trama. Acabei me estendendo até demais.

A série tem uma bossa, uma sacada, uma invenção formal. Cada um de seus oito episódios tem o nome de um lugar da cidade de Istambul – uma rua, um farol, um bairro. E em cada episódio a voz em off da atriz que interpreta Zehra, essa bela e talentosa Helin Kandemir, lê para o espectador um trecho da Enciclopédia de Istambul – o livro sobre o qual uma professora de arquitetura fala aos alunos logo na primeira aula a que Zehra assiste.
Os textos da Enciclopédia de Istambul que ouvimos são belíssimos. São escritos em um estilo precioso, rebuscado, cheio de floreios, imagens – uma coisa bastante poética, e de uma poética antiga, eu não saberia definir bem. Algo que é meio barroco, meio gongórico.
O Google ensina:
A Enciclopédia de Istambul (İstanbul Ansiklopedisi) foi um projeto inacabado do escritor e historiador turco Reşad Ekrem Koçu (1905-1975), publicado em fascículos de 1944 a 1951 e relançado em 1958, cobrindo tópicos históricos, geográficos, arquitetônicos, literários e folclóricos de Istambul. A obra, que combinava a tradição da tezkire (biografias) otomana com a enciclopédia ocidental, é reconhecida por sua abordagem colorida e nostálgica, detalhando desde fontes e banhos até a vida de eunucos, bailarinos e personagens fascinantes da cidade, tanto durante o período otomano e na história turca recente.
O autor desta bela série – que homenageia a cidade e o homem que escreveu a Enciclopédia – se chama Selman Nacar. Ele criou a história, escreveu o roteiro de todos os oito episódios e foi também o diretor de todos eles. Sozinho! Só ele e Alá, se é que ele acredita em Alá – embora seja bastante óbvio que no islamismo professado de forma radical, brutal, ele não acredita de forma alguma, muito antes ao contrário.
É muito, mas muito, mas muito pouco usual isso – uma única pessoa criar a história, escrever todo o roteiro e dirigir todos os episódios. O cinema é uma arte absolutamente coletiva, com uma face abertamente industrial.
Só para dar dois exemplos da própria Turquia: Próximo!/Kimler Geldi Kimler Geçti, série de 2024, foi dirigida por Bertan Basaran, com argumento e roteiro de Ece Yörenç, que teve a colaboração de Ayse Ozyilmazel e Özgür Taylan. Quatro profissionais. Cemitério/Mezarlik, série de 2022, foi dirigida por Abdullah Oguz, e o roteiro foi escrito por Onur Böber, Özden Uçar, Evren Oguz. Quatro profissionais.
E isso é até pouco. Há muitas, muitas séries com um número bem maior de profissionais na direção e criação do roteiro.
Selman Nacar, meu Deus do céu e também da Terra, é um garoto! Nasceu em 1990, quando minha filha estava com 15 anos de idade! Em agosto de 2025, o IMDb registrava que ele havia produzido 9 títulos, dirigido e escrito os roteiros de 7, sido diretor de fotografia de 3 e montador de 2.
Como suas personagens Nesrin, Zehra e Aylin, o artista nasceu no interior do Turquia – em Uşak, de porte médio, com mais de 250 mil habitantes. Mas, como as duas primeiras, foi para a grande metrópole estudar, e em 2016 se formou na Faculdade de Cinema da Universidade Bilgi de Istambul. Na era pré-Trump II, fez pós-graduação na Universidade de Columbia, em Nova York.
Meu Deus! Que talento!
Um último registro, sobre as duas atrizes principais da série. A começar das idades. Naquele primeiro encontro das duas, Nesrin- Canan Erguder comenta que, quando Zehra- Helin Kandemir tinha 1 ano, ela estava com 24 e fazia acho que o quinto ano da Faculdade de Medicina. Seriam, portanto, 23 anos de diferença entre as duas – a gente pode imaginar que Zehra estava aí com uns 20, e Nesrin com 44.
A diferença de idade entre as duas atrizes é um pouquinho maior, de 28 anos.
Canan Erguder é de 1976, de Istambul mesmo, e estava com 49 no ano de lançamento da série, 2025. Tinha 18 títulos na filmografia
Helin Kandemir é de 2004, também de Istambul, estava com 21 anos – mas, embora quase três décadas mais jovem que a colega, sua filmografia já contava com 15 títulos. Tem tudo para ir longe essa moça…
Anotação em agosto de 2025
A Enciclopédia de Istambul/Istanbul Ansiklopedisi
De Selman Nacar, criador, roteirista e diretor, Turquia, 2025.
Com Canan Erguder (Nesrin, a médica),
Helin Kandemir (Zehra, a estudante),
Kaan Miraç Sezen (Harun, o colega e namorado de Zehra), Nezaket Erden (Emel, a irmã de Nesrin), Melisa Sözen (Aylin, a mãe de Zehra), Grégory Montel (Louis, o professor de francês de Nesrin), Zehra Durgut (Fatma, a colega religiosa de Zehara), Tolga Tekin (Serdar, o namorado de Nesrin), Pelin Batu (Özlem), Müjde Ar (Nazife), Fatih Sevdi (Osman), Yigit Ege Yazar (Ömer), Ferhat Yilmaz (médico), Bilgesu Akin (Piril), Sinasi Sirkinti (Ilker)
Fotografia Baris Aygen
Música Avi Medina
Montgem Ayris Alptekin
Desenho de Produção Billur Turan
Direção de arte Güzin Erkaymaz
Casting Ezgi Baltas
Produção Ilker Cosanm Ipek Erden, Tims & B Productions
Cor, cerca de 360 min (6h)
Fonte: 50 anos de filmes

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.