29 de março de 2024
Colunistas Paulo Antonini

Um revival de “David e Golias”

Costumo dizer que sem nossos amigos de infância, não teríamos testemunhos de nossas histórias e nossa trajetória.

Seria como contar causos e não existir uma única alma viva a confirmar o que contamos, poderia ser ou não verdade, como saber?

Mas nesse momento de legitimar nosso passado, esses queridos entes, por mais distantes que de nós estejam, de um jeito ou de outro, não só legitimam como acrescentam fatos já esquecidos, detalhes já borrados pelo tempo.

Ontem, num domingo borulento e cansado, fui da praia ao bar, onde sei que muitos deles estariam, bebendo suas cervejas e contando lero e boleros.

Ao chegar, de cara, vejo a presença de um, que com certeza, foi um dos primeiros com quem travei amizade e que ainda é vivo. Não preciso mencionar que muitos já se foram, não pela idade, e sim, porque vivemos uma intensa época de sexo, drogas e rock&roll.

Tempo das viagens sem volta, com muito ácido e fantasia, como nosso amigo Chumbinho, que se foi, antes mesmo de completar a maioridade. Tomou um punhado de fitinhas do pateta na boca e na cobertura de um amigo, no sétimo andar, julgou ser o Homem Aranha e saiu a escalar pelo prisma do prédio. Realmente, esse, logrou, escalou direto ao cume celestial.

Voltando aos amigos que vivo estão, lá estava Roberval, que fazia alguns anos não o via, já que foi morar em Paris e antes mesmo, pouco nos falávamos.

Junto a ele, outros personagens, como macaco Simão, o Pimentel, hoje, policia federal e Cain, o mais velho de todos nós, surfista e cinegrafista. Rapidamente me passaram um copo da loura, cheio e gelado e aos poucos fui entrando no clima de jogar conversa fora.

Essas recordações sempre começam com aquela pergunta repetitiva; Lembra de fulano? Lembra disso e daquilo? E quando você se dá conta, está envolvido num turbilhão de emoções que num quadro a quadro, formam um mosaico de vida, da sua vida.

Roberval começou falando de sua nova residência e família na França, de seus filhos e seus pais, e aí, foi o link para trazer o passado para a conversa. Comentamos sobre o prédio onde vivia, dos vizinhos e amigos, de dona Wanda, que tinha nada mais que 15 gatos e seis cachorros, e nos distribuía escudos de patrulheiro das aves, escudo esse, que nos enchia de orgulho e nos dava poder de polícia, pensávamos, e saíamos a patrulhar as ruas e combater os meninos da Praia do Pinto que portavam atiradeiras e matavam os pássaros sem a menor dó.

Nessa mesma rua onde ficava seu prédio, eu também morava, Rua Venâncio Flores, Leblon. Recordamos das brincadeiras de policia e ladrão, que os esconderijos eram por todo o bairro, creiam, não havia mais que um sinal luminoso, e muitos terrenos baldios, onde pastavam animais atrelados a carroças para a condução de seus donos.

Passávamos o dia pra achar alguém escondido e ninguém achava cansativo ou chato, era uma aventura. Relembramos os casarões e seus moradores, quem era chato e quem era legal. Quem devolvia as bolas e quem não, como o seu Batalha e o Almirante, os arrastões de pescadores que ajudávamos a puxar as redes em troca de peixe fresco enfim, fomos avançando no tempo de trás pra frente. Chegamos nas cabeças de nego, que soltávamos nas portas das casa, não sem antes tocar a campainha e sair correndo, e todo tipo de travessuras que faziam as crianças daquela época.

Tínhamos um parque de diversões na rua ao lado, com autopista, roda-gigante, trem-bala e tudo que podia ter um parque dessa época, que ficava junto à Praça Antero de Quental, com seus lagos e áreas de grama onde fazíamos nossos campos de futebol e tomávamos banhos em seus chafarizes.

Avançamos a ponto de chegarmos já a uma adolescência avançada, quando alguém perguntou: Lembra, Roberval, do fusca azulzinho que você tinha?

Eu respondi por ele:

Claro, que ele lembra. tomamos uma dura da policia na subida do Joá, indo pra cachoeira da Iposeira, aceleramos o fusca ao máximo, mas não dei jeito, a joaninha nos alcançou. Roberval, tinha apertado um baseado tão grande e grosso, que quando os homi, nos pararam e deram a dura, ele enfiou tudo na boca e mastigava e falava ao mesmo tempo que estava comendo alfafa e não, a erva, que os policia, mandavam ele cuspir. De supetão, já que estava quieto, só ouvindo, Cain, se vira pra mim e diz:

Não lembro dessa história, não, mas lembro da tua briga com o TONELADA!!! Aquele nome como num filme de assombração se levantou dos porões de minha memória e ecoava por minha lembrança…TONELADA TONELADA TONELADA!

Esse apelido era uma verdadeira onomatopeia, sonoplastia perfeita pra esse sujeito. Grande, corpulento e totalmente dedicado ao mal. Se preparava em treinos diários de lutas, apenas pelo prazer de sair pelas ruas encrencando e batendo em quem estivesse à sua frente. Era famoso por invadir festas e terminar com elas. Carregava a fama de mau e a lenda de ser insuperável.

Bem… como o tonelada entrou na minha vida? Lembram do Chumbinho, que mencionei acima? Pois bem, ele tinha 3 maravilhosas irmãs, e uma delas, eu estava caidinho por ela. Se chamava Thereza, Morena, magra, com mais curvas que a estrada de Santos, além de uma simpatia sem fim, usava um minúsculo biquininho branco, que era o meu sonho de consumo. Thereza, me convidara a ir a uma festa com ela no condomínio das Canoas, em São Conrado, eu prontamente, aceitei e fiquei a semana toda me preparando mentalmente para o grande momento.

Tínhamos a mesma idade, 19 anos, ela por óbvio, era mais amadurecida e maliciosa, o que já se tornava um desafio. chegado o dia rumamos os dois, guiados por Deus e conduzidos pela linda morena em seu fusca.Chegando, subimos ao salão de festas, que ficava sobre o restaurante e logo em frente à piscina. Sabe como é, garoto, apaixonado, não sabia por onde começar ou o que fazer. Só tinha olhos pra ela e não fiz outra coisa a não ser cortejá-la. Pegava bebida, comidinhas, tentava agradar e marcar ponto. Tudo ia bem até o momento que ouço um alarido, um zumzuzum danado:

Tonelada, chegou com sua turma, está estacionando as motos, gritou alguém. Pra falar a verdade, eu só soube quem era o Tonelada, a partir dessa trágica noite.

Estava junto aos últimos degraus da escada que levavam ao salão, quando o cara adentrou e já subindo, por onde passava ia empurrando e socando quem estivesse no seu caminho, naquele momento, eu não tinha mais tempo pra nada, a não ser me defender e mostrar a minha valentia para aquela deusa por mim escolhida.

Imagem: Google – meramente ilustrativa

Assim que ele se aproximou e viu que eu assumira uma postura de enfrentamento, me disse:

Vai ficar aí parado, ô babaca? vou te matar de porrada! O que ele não contava é que a Thereza, minha musa, estava presente, não só fisicamente, como no meu coração, o que me deu forças e coragem, pra enfrentar o peso pesado. Não que eu fosse minguado ou pouco atlético, muito ao contrário, eu era forte, ágil e muito flexível, e sabia brigar, apesar de ser da paz. Mas o cara era um tanque de guerra, e vi minhas chances de sobrevivência reduzidas a própria sorte que eu pudesse ter.

Mal dei tempo a ele de acabar de pronunciar suas ameaças, já meti 2 poderosos punchs ou ganchos, como queiram, na sua anatomia facial redonda e volumosa. Foi aí, que percebi o tamanho da encrenca que eu estava; Ele se quer acusou o golpe, foi como se eu tivesse acarinhado seu rosto, se quer, ele fez menção a tombar.

A peleja teve início dentro do salão, onde eu vi que ali, não seria o ringue indicado, jamais teria sucesso, se o deixasse no corpo a corpo comigo.

Minha única salvação era o levar pra um local aberto e o cansar com esquivas e golpes rápidos. Tratei de descer as escadas e o conduzi a me acompanhar até a área da piscina. Tinha aí, apesar de uma área livre, algumas mesas e cadeiras feitas com uma madeira maciça e pesada, pra minha surpresa, ele começou a arremessar contra mim, todo esse mobiliário, que por ser pesado, eu tinha tempo de me esquivar.

Minha pulsação e respiração estavam no vermelho e minhas energias, findando, assim como ele, mas, não tinha como parar, o sujeito tava disposto a matar ou morrer. Tratei de mais uma vez, mudar cenário da luta, fui partindo em direção à portaria, onde aí, a pancadaria ganhou contornos mais carnais.

Ele batia de um lado e eu me esquivava e mandava de volta algum golpe, mas a besta nada sentia, apenas bufava com mais intensidade e raiva. Passado, já, seguramente, 20 minutos de testosterona a mil, ambos davam sinal de fadiga intensa, quando Tonelada tratou de tentar o golpe final.

Feito uma locomotiva destrambelhada, ele partiu pra cima de mim, já esquecendo qualquer tática ou técnica de luta, seu intuito era me pegar e me jogar ao chão e me comer aos pedacinhos. Assim que aquele trem veio em minha direção, eu deixei ele se aproximar bem e tratei de dar meu xeque mate, tirei meu corpo da reta, e num último apagar das luzes, lhe dei um pontapé no estômago e o empurrei contra as motos que estavam estacionadas. Pra minha salvação, meu golpe fora certeiro, e ele, creio que mais por cansaço, desabou sobre as máquinas e como num desenho animado, ficou ali, empastelado.

No dia seguinte, não se falava em outra coisa que não fosse essa briga:

Pé de Pato nocauteou o tonelada!!! Virei herói, estava na boca de todos, nas manchetes e sem disfarçar uma certa vaidade, eu me enobrecia pelo feito. Mas esse heroísmo me custou anos de apreensão, porque o tonelada, me jurou de morte, dizia que iria me pagar mais cedo ou mais tarde.

Muitos anos se passaram, talvez, mais de 10, e num dia, de muita chuva e frio, fui à Vista Chinesa pra fazer minha corrida diária, ao chegar ao topo, me sentei, como sempre fazia, pra respirar e me alongar. Não havia mais ninguém, além de mim, minha respiração e a natureza.

De repente, do nada, estaciona um carro, todo fechado e escuro, e por alguns instantes não saiu ninguém de seu interior. Relaxei e voltei a respirar, num átimo de tempo que fechei os olhos, quando os abro de volta, vejo um sujeito sentado ao meu lado, colocando os braços sobre meu ombro e me deixando entrever em sua cintura, uma arma. Sabe, neste curtíssimo momento tudo passa em sua cabeça…? Pois, é, era ele, TONELADA, que levantara da tumba e veio me assombrar para cobrar sua promessa. Disse, ele:

Quanto tempo meu amigo, como vai? Lembra de mim? Mudo fiquei, mas percebi que havia algo de diferente nele, claro, o tempo havia passado, mas, não era isso, ele tinha um ar meio apastelado, abobalhado, meio tarja preta.Tomei coragem e balbuciei;

Tonelaaaada, foi há tanto tempo, éramos muito garotos, fizemos muita besteira, não foi?

Sabe que você foi o único cara que me ganhou numa porrada?

Deixa disso, esquece! Não vale a pena!

Me fitou fixamente nos olhos, e eu, já temendo pelo pior, tratei de analisar minhas chances de sair dali vivo… Chance zero. Ele colado a mim, armado, o que fazer a não ser esperar?

Quando me vi perdido, sem nenhuma esperança, escuto de sua boca palavras que mais soavam como um milagre, e como tal, difícil de crer, mais pareciam deboche e ironia:

Quero te dar o parabéns pelo seu feito, e dizer que você tem o meu respeito, afinal, como não admirar o cara que me venceu?

Ainda continuei achando que era gozação, ironia, ele não poderia estar sendo tão altruísta e refinado, não combinava em nada com ele. Pensei que a qualquer momento ele diria, pode andar e mandaria bala pelas costas.

Alguns segundos depois de um eterno silencio, ele se levantou, caminhou como uma lesma se arrastando até o carro, abriu a porta, entrou, ligou o motor e partiu pra todo um sempre.

Nunca mais eu soube dele, o revi, ou pensei nele, não, não até esse encontro com o passado.

Como falei, nada somos de factível sem nossos amigos de todo o sempre. São os testemunhos de nossas vidas, para o bem ou para o mal.

Bem-vindo, Roberval.

Paulo Antonini

Paisagista bailarino e amante da natureza. Carioca da gema, botafoguense antes do Big Bang.

Paisagista bailarino e amante da natureza. Carioca da gema, botafoguense antes do Big Bang.

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