Um rapaz comum vai ao shopping center na hora do almoço. A cena era a de uma rotina absolutamente banal, mas que ganharia dezenas de milhões de testemunhas logo ali adiante. Abordado por uma criança que vendia balas no estabelecimento pedindo-lhe dinheiro, o rapaz fez o que qualquer pessoa em seu lugar deveria fazer, mas que raramente faz: ofereceu não dinheiro, mas um almoço e mandou o menino olhar no balcão self-service e escolher o que quisesse comer.
A cena de generosidade e compaixão se transformou imediatamente em tumulto. Um segurança do shopping decretou que o menino não poderia almoçar ali. Por quê? Porque não podia e pronto. Menino pobre, negro, malvestido e mal calçado, não pode. Mas, em tempos em que câmeras de celular são uma mistura de prova documental, advogado de defesa ou de acusação, porte de arma e liberdade para usar, o rapaz mandou quem estava com ele filmar a contenda e deu ruim para o segurança. Durante e depois.
Abutre
O episódio terminou como o rapaz desde o início queria. Ele pagando e o menino almoçando. Mas um estrago e tanto se deu. Os três foram expostos nas redes sociais: rapaz, menino e segurança. As imagens do celular do rapaz literalmente ganharam as redes e o mundo, e a assessoria do shopping primeiro se explicou, sem explicar nada. Em seguida, cortou a corda onde a gente sempre sabe que ela arrebenta: do lado mais fraco. Sem tocar na violência do estabelecimento quanto ao menino, anunciou o afastamento do segurança, como se aquele homem tivesse adotado aquela atitude hostil não por cumprir orientações, mas simplesmente porque lhe dera na telha.
Milhões de pessoas compartilharam as imagens nas quais o rapaz enfrentava três seguranças do shopping. Falsos padrinhos apareceram nas horas seguintes tomando posse do menino para anunciá-lo literalmente como um troféu midiático seu. O rapaz saiu de cena, acuado, caçado, assustado, com medo dos abutres da imprensa atrás dele. Para a maioria, ele era um Cristo ressuscitado só por ter feito o obvio: comprado uma briga para poder dar comida a um menino faminto. Já outros, incapazes de conhecer o sentido da palavra compaixão, bradavam: o que aquele homem queria era tão somente 5 minutos de fama. Grupos de conversação da polícia fizeram chegar às pessoas imagens de um vídeo feito depois do fatídico almoço, mostrando o garoto numa situação que parecia exigir de quem as recebia sua condenação e crucificação.
Sereia no granito
No meio disso tudo, o espanto: por que tanto barulho? Era apenas um homem tentando matar a fome de uma criança. Quanto mais barulho se fazia, mas aquilo tudo se aproximava do canto de Gilberto Gil, em “A novidade”. De um lado, aquele carnaval. De outro, a fome total. O que havia de extraordinário? O que havia de tão assombroso em um gesto de alguém querendo alimentar um menino que foi jogado pela vida no meio da fome e do abandono? O que havia de novidade na existência daquela criança? Parecia que se tratava da sereia da música de Gil, irrompendo na hora do almoço do granito condicionado de uma praça de alimentação.
Era como se o menino tivesse nascido já daquele tamanho, naquele instante e já com fome, naquele lugar onde ele era um ruído na paisagem. Os falsos padrinhos, os comovidos das redes, a imprensa, nunca tinham visto naquelas imediações um exército de crianças na mesma condição que aquele menino? Qual era a novidade? Menos de uma semana depois, um carro invade a área das lojas de um outro shopping. Era uma mulher, em pânico, fugindo de um assalto no estacionamento. O barulho nas manchetes foi mínimo. Quando um carro, entrando nos corredores de um shopping, chama menos atenção do que um homem comprando uma briga para ter o direito de dar comida a uma criança com fome, é porque estamos mais doentes do que imaginamos.
Uncategorized
Uma cena de generosidade e compaixão se transformou em tumulto
- Por O Boletim
- 18 de junho de 2018
- 0 Comentários
- 3 minutes read