19 de abril de 2024
Sergio Vaz

Byzantium

De: Neil Jordan, EUA-Inglaterra-Irlanda, 2012

 
 
 
 
 
Nota: ★★½☆
Quando começa a ação de Byzantium, faz 200 anos que Eleonor Webb, a personagem interpretada por Saoirse Ronan, tem 16 anos de idade. Como a ação se passa nos dias atuais, e o filme, lançado em 2012, foi rodado em 2010, podemos então verificar que Eleonor tinha já 16 anos quando Napoleão Bonaparte reinava sobre um imenso império que englobava praticamente toda a Europa.
Eleonor já era uma adolescente na sua Irlanda natal quando, fugindo das tropas de Napoleão, Dom João VI e sua mãe, Dona Maria, a Louca, mais dezenas e dezenas de pessoas da corte portuguesa embarcaram rumo a esta imensa colônia da América do Sul.
Na primeira vez em que Eleonor se encontra com Frank (Caleb Landry Jones), o rapaz muito pálido e muito doente por quem ela vai se apaixonar, ela se senta ao piano do belo restaurante em que Frank trabalha, e toca um trecho da Sonata de Piano Nº 3 de Beethoven. Ele, impressionado, pergunta:
– “Quanto tempo você levou ensaiando isso?”
E Eleonor responde: – “200 anos”.
Saoirse Ronan, que tinha exatamente 16 anos quando interpretou Eleonor, em 2010, levou bem menos tempo para ensaiar: segundo o IMDb, ela teve um treinamento intenso de 12 semanas com um professor de piano para executar o trecho da Sonata Nº 3 de Beethoven que o espectador ouve. Bem, mas Saiorse Ronan não é uma atriz comum. Bem ao contrário. É absolutamente extraordinária, uma das maiores da História do cinema, e então dá para a gente aceitar a afirmação do IMDb de que quem toca o piano naquela cena é a própria atriz.
Foi por causa de Saoirse que me dispus a ver Byzantium, uma co-produção EUA-Inglaterra-Irlanda dirigida por Neil Jordan. Pretendo ver absolutamente todos os filmes que essa moça fizer. Mesmo se a princípio não me agradarem, como esse Byzantium não me agradou.

“É como se Mary Shelley e Allan Poe tivessem se reunido numa criança estranha”

Na primeira sequência do filme, ouvimos a voz de Saoirse Ronan-Eleonor Webb dizer o seguinte:
– “Minha história jamais pode ser contada. Eu a escrevo várias vezes, sempre que tenho um abrigo. Escrevo aquilo que não posso dizer: a verdade. Escrevo tudo o que eu sei dela, e então jogo as páginas ao vento. Talvez os pássaros possam lê-las.”
É porque passa a ter pelo jovem Frank um grande afeto que Eleonor, já na segunda metade da narrativa, resolve escrever a história da sua vida e – em vez de jogar fora, como sempre fazia – entregar a verdade para ele. Absolutamente impressionado com o que considerava ser obra de uma imaginação fertilíssima, Frank entrega as páginas manuscritas a seu professor. Que, também impressionado, leva o manuscrito a uma psicóloga (interpretada por Maria Doyle Kennedy).
Ao entregar o manuscrito à amiga, o professor diz:
– “É como se Mary Shelley e Edgar Allan Poe tivessem se reunido numa criança muito, muito estranha.”
Se estabelecermos, a partir das datas que os personagens dos filmes nos apresentam, que foi em 1810 que, aos 16 anos de idade, Eleonor passou a ser imortal, então quando ela chegou aos 16 anos Mary Shelley estava com 13. Edgar Allan Poe, mais jovem ainda, tinha apenas 1 ano de idade.
A Queda da Casa de Usher foi publicado em 1839, quando já faziam 29 anos que Eleonor tinha 16. Frankenstein ou O Moderno Prometeu saiu em 1818: Eleonor estava apenas iniciando os 200 anos que viveria até a época em que a vemos no filme de Neil Jordan.
Eu não sabia dos fatos abaixo quando vi o filme, bastante de pé atrás diante da história que me parecia uma grande tolice, mas, em 1816, Lord Byron, o casal Percy e Mary Shelley, mais os amigos Claire Clairmont e John Polidori se reuniram numa villa na Suíça para uma espécie de brainstorm para ver quem conseguiria criar a melhor história fantástica. Foi a partir dali que Mary Shelley criou Frankenstein ou O Moderno Prometeu. Lord Byron começou uma história de vampiros, que depois abandonou. John Polidori pegou aquele início de história e criou O Vampiro, um precursor do Drácula de Bram Stoker, que seria lançado em 1897.
O personagem título de O Vampiro foi desenvolvido com base na figura de Lord Byron. Chamava-se Ruthven.
Esse Ruthven aparece na trama de A Vampire Story, peça de Moira Buffini, uma escritora inglesa filha de irlandeses nascida em 1965. O roteiro deste Byzantium se baseia na peça, e é de autoria da própria Moira Buffini.

Uma história que parece ter sido criada à base de alucinógeno forte

Se todas essas referências parecem uma coisa assim bem viajandão, não é à toa. A história criada por Moira Buffini e filmada por Neil Jordan – um realizador bem chegado às coisas mais estranhas que pode haver – é, sem dúvida, um grande viajandão. Coisa que parece ter saído de uma mente muito imaginativa turbinada por alucinógeno dos poderosos.
Quando a ação de Byzantium começa, Eleonor e Clara vivem num apartamento de classe média média, numa cidade irlandesa não identificada. Estamos, como já foi dito, nos dias de hoje, mais especificamente a época em que o filme foi feito, 2010.
Clara (interpretada por Gemma Arterton, aquela atriz belíssima a quem sempre dão papéis sensuais) vive da prostituição; está trabalhando num clube noturno. Um sujeito aparece lá à procura dela; Clara foge, o sujeito a persegue, ela acaba decepando a cabeça dele e, para esconder todos os vestígios, toca fogo no apartamento em que morava.
Ela e Eleonor partem então em busca de uma nova cidade para morar. Pelo que vemos dos protestos de Eleonor, mudança de casa, de cidade, é algo constante na vida das duas.
Clara escolhe uma cidade litorânea para as duas se fixarem. Não se fala o nome da cidade, embora fique claro que toda a ação se passa na Irlanda (as filmagens desse trecho do filme foram em Hastings, no litoral Sul da Inglaterra, diante do Canal da Mancha).
Por acaso, Clara fica conhecendo Noel (Daniel Mays), um homem solitário, tímido, que acaba de perder a mãe. Noel é dono de um prédio que tinha sido um hotel chamado Byzantium, de frente para o mar; por incompetência dele, o hotel tinha falido, Noel estava cheio de dívidas. Clara e Eleonor acabam passando a morar lá com Noel.
Clara sempre apresenta Eleonor como sua irmã mais jovem, mas na verdade é a mãe da garota.
O que em si já é estranho, pois Gemma Arterton é muito nova para ter uma filha de 16 anos. Gemma Arterton é de 1986, apenas 8 anos mais velha que Saoirse Ronan, de 1994. Embora as duas atrizes tenham praticamente a mesma altura (segundo o IMDb, Gemma tem 2 centímetros a mais que Saoirse), no filme a personagem Clara parece muito maior, mais alta e mais larga, mais forte, que Eleonor.

Ser vampiro era uma honra apenas para homens. Um Clube do Bolinha

O passado daquelas duas mulheres, longo, imenso, de mais de 200 anos, vai sendo revelado pouco a pouco. Por isso, e também por imensa preguiça, não vou relatar aqui muito desse passado. Creio que basta dizer – sem cometer spoiler – que, nessa história de vampiros criada por Moira Buffini, ser vampiro é um dom; os vampiros fazem parte de uma irmandade, uma fraternidade secreta e intensamente seletiva; só um sócio, um membro pode convidar um mortal a entrar para a fraternidade – e a transformação do mortal em vampiro se dá em um ritual de sangue numa ilha deserta que poucos conhecem.
Como aqueles clubes ingleses antigos que a gente vê nos filmes, a fraternidade é exclusiva de homens. Clube do Bolinha – proibida a entrada de mulheres.
Bem mais de 200 anos atrás, Clara havia se valido de uma trapaça para obter a localização da tal ilha e se disposto ao ritual de iniciação.
Os líderes da fraternidade jamais engoliram bem essa usurpação, essa intromissão de uma mulher nos seus domínios.

Macabro, tristonho, lúgubre demais para agradar às adolescentes românticas

Não dá para saber se a peça teatral de Moira Buffini e esta versão cinematográfica realizada por Neil Jordan têm ou não a capacidade de agradar às platéias adolescentes que adoram histórias de amor de vampiros, tipo a saga Crepúsculo.
Não dá para saber – mas imagino que o filme não seja tão do agrado das meninas sonhadoras que se derretem com a figura de Robert Pattinson. O filme de Neil Jordan é gótico a não mais poder, de um gótico hard, pesado, sanguinolento, macabro, tristonho, lúgubre.
É bom lembrar que esse irlandês autor de filmes esquisitões como Malucos e Libertinos (1988) e Café da Manhã em Plutão (2005) é chegado a um vampirismo desde muito antes dessa moda Crepúsculo. É dele Entrevista com o Vampiro, de 1994, aquele com Tom Cruise, Brad Pitt e Antonio Banderas, baseado no best-seller de Anne Rice.
Se não é feito para agradar a adolescentes, e também não é muito indicado para platéias maduras que preferem ver filmes sérios sobre o amor a vida a morte, então para quem, exatamente, teria sido feito este Byzantium?
Parece que essa questão é – perdão pelo trocadalho do carilho – bizantina, porque o povo gosta do filme. No belo site Allmovie, ele tem 4 estrelas em 5 tanto dos editores quanto dos leitores. A crítica assinada por Cammila Collar começa assim:
“Byzantium provavelmente obteve luz verde dos produtores porque envolve vampiros, e vampiros são um tema quente neste momento. Mas não permita que isso deixe você com medo: Byzantium é um filme britânico independente, cerebral, muito cheio de atmosfera para ser confundido com alguma coisa parecida com a série Twilight. E embora o diretor Neil Jordan não seja nenhum estranho ao universo de fazer filmes sobre vampiros tragicamente atraentes – tendo feito Interview With the Vampire lá atrás, em 1994 –, este filme tem pouca semelhança com aquela série, fugindo de toda aquela pompa tola e operística em favor de uma narrativa contida mas sincera.”
Pode ser. Pode ser. Eu, pessoalmente, prefiro quando Saiorse Ronan empresta seu fantástico talento a personagens de filmes sérios, sobre pessoas como o eventual leitor e eu, pessoas comuns, gente como a gente, como Desejo e Reparação (2007), Caminho da Liberdade (2010), Brooklyn (2015) ou mesmo o trágico demais Estocolmo, Pensilvânia (2015).

Anotação em junho de 2017

Byzantium
De Neil Jordan, EUA-Inglaterra-Irlanda, 2012
Com Saoirse Ronan (Eleanor), Gemma Arterton (Clara)
e Sam Riley (Darvell), Jonny Lee Miller (Ruthven), Daniel Mays (Noel), Caleb Landry Jones (Frank), Ruby Snape (Wendy), Jenny Kavanagh (garçonete), Glenn Doherty (Steve), Thure Lindhardt (Werner), Gabriela Marcinkova (Anya), Edyta Budnik (Nadia), Barry Cassin (Robert Fowlds), Uri Gavriel (Savella), David Heap (cliente da dança), Caroline Johns (Clara jovem), Christine Marzano (Mrs. Strange), Kate Ashfield (Gabi), Jeff Mash (Mark), Ronnie Masterson (velha no hospital), Patricia Loveland (velha no hotel)
Roteiro Moira Buffini
Baseado em sua peça teatral A Vampire Story
Fotografia Sean Bobbit
Música Javier Navarrete
Montagem Tony Lawson
Casting Susie Figgis
Produção Demarest Films, Lipsync Productions, Number 9 Films, Parallel Film Productions, WestEnd Films.
Cor, 118 min (1h58)
**1/2

O Boletim

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