26 de abril de 2024
Colunistas Ligia Cruz

Entre as papoulas e as armas

Imagem: Google Imagens – BBC

O mundo se compadeceu com as imagens de afegãos desesperados caindo do trem de pouso de uma aeronave americana decolando do aeroporto de Cabul. E depois passando os filhos pequenos para os soldados americanos, pela cerca divisória do aeroporto, para que tenham chances de viver num país livre.

As cenas trouxeram à mente lembranças doloridas da Guerra do Vietnam, de onde os Estados Unidos também saíram num rompante deixando para trás episódios de terror em um país destroçado em todos os aspectos. E o pior de tudo é que perdeu. Até hoje esse país do sul asiático convive com as sequelas dos anos de ocupação, entre 1955 e 1975.

Desta vez, não foi diferente. A decisão do presidente americano Joe Biden de retirar as tropas de maneira atabalhoada do Afeganistão, após 20 anos de ocupação faz o mundo questionar qual foi o propósito da presença das forças de colisão por tanto tempo, pois os talibãs permanecem vivos, até em maior número, e o tráfico de drogas não foi debelado.

A questão é controversa, mas tem tudo a ver com cifras. O custo dessa guerra contra os radicais islâmicos está gigantesco. Até 2050 cada cidadão vai pagar U$20 mil para o estado para combater o terror. Ademais, os Estados Unidos não tomaram essa decisão agora. Isso ocorreu ainda no governo Obama, reiterada e negociada por Donald Trump junto aos líderes talibãs – se é que se pode negociar com grupos terroristas – e levada a cabo por Joe Biden. Ele fez o que estava previsto e a data final era setembro deste ano, quando se completa 20 anos dos atentados de 11 de setembro, em Nova Iorque. Mas tinha a caneta para recuar se quisesse.

Só faltou uma análise um pouco mais profunda do atual momento do país. O Afeganistão revela o despreparo do governo norte-americano e das outras forças de colisão, formada pela maioria dos países europeus, além da Turquia, Índia, Austrália, Nova Zelândia e países árabes, para administrar crises.

Óbvio que cidadãos em todo mundo caíram de pau sobre os EUA por terem agido de forma pragmática, ignorando as informações de inteligência das frentes de guerra de que os talibãs estavam se reagrupando pelo país à medida que os estrangeiros estão saindo.

O resultado disso não pode ser bom para uma sociedade que durante duas décadas reconquistou direitos, como as mulheres, que voltaram a estudar, a andar pelas ruas sozinhas, sem a tutela de um homem. As mulheres são as mais vulneráveis nesse tipo de regime. Excluídas e assassinadas continuamente. Um total de 24% delas ainda hoje é analfabeta.

Em menos de 10 dias da queda do governo já se vê mulheres de burca novamente. Foram retiradas de seus trabalhos para a reclusão em casa. Isso não pode ser bom, o que nos faz pensar que os trilhões de dólares gastos no país pelos estrangeiros foram rasgados. Nada mudou.

O resultado de tudo isso é mais sofrimento para o povo afegão que nunca conviveu bem com suas diferenças étnicas e culturais.

O país sofre com perseguições às minorias étnicas e religiosas por parte dos pashtuns, população majoritária em 52% e que integra os radicais islâmicos como os talibãs. Grupos como tajiques (origem persa), hazaras (origem mongol) e usbeques (turcomenos) têm sido dizimados , numa constante prática de limpeza étnica. Estima-se que cerca de seis mil pessoas foram mortas por esse tipo de intolerância nos últimos anos. Mas a contabilidade humana nefasta pode ser até pior.

A etnia pashtun já tem treino de outras experiências de combate e foi a base de defesa do Afeganistão durante a invasão russa, entre 1979 e 1989.

O país montanhoso, de difícil trânsito, é um desafio para qualquer um que se meta por lá, sem conhecer. Até porque há outros grupos armados, como a rede Haqqni, movimento guerrilheiro que atua na fronteira com o Paquistão. E há até mesmo integrantes da Al-Qaeda, de Bin Laden, que muita gente acredita que não acabou.

O wahhabismo, movimento sunita ultraconservador e raiz ideológica do estado islâmico, frutifica por lá. É o mesmo do ex-líder talibã Mohhamed Omar, que protegia o mentor da Al-Qaeda e foi morto em 2013.

O ex-presidente, Ashaf Ghani, que bateu em retirada após o avanço talibã em Cabul, também é pashtun. Ele liderava o país desde 2014. No país acham que ele foi fraco, pois é impossível que o seu exército ou mesmo das forças de colisão não soubesse da reorganização dos talibãs. Em outras palavras, se fez de morto. E o resto de sonso.

O mais grave dessa situação toda é que há sinais de que o Afeganistão pode mergulhar numa guerra civil enquanto há o vazio de poder e já surgem grupos de resistência antitalibã. Como está ocorrendo neste momento no Vale do Panshir, sul do país.

Além de implantar a sharia, lei islâmica conservadora, os radicais islâmicos conhecem o potencial econômico do país, que possui reservas de bauxita, cobre, ferro, lítio, terras raras, mármore e, claro, o carro-chefe da economia: o cultivo da papoula, a matéria prima do ópio e da heroína. Além do narcotráfico, doações por lá, corrupção, extorsão e um sistema de “doações” escusas.

Admirável que um grupo “tão religioso” conviva tão tranquilamente com o narcotráfico.

Nesses 20 anos de guerra da colisão contra os talibãs, liderada pelos Estados Unidos, morreram 174 mil pessoas – até antes da queda do governo, neste mês de agosto – dos quais 48 mil civis.

Para os americanos, os custos dessa guerra chegam a U$800 bilhões. Só em juros altos serão mais U$500 bilhões. Até 2050 a conta pode chegar a U$6,5 trilhões, incluindo tudo, o que equivale a uma cota de U$20 mil para cada cidadão americano.

Por esses números que parecem surreais dá para entender que, ficar no Afeganistão por tempo demais, custou muito caro. Agora, só Deus sabe.

Ligia Maria Cruz

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.

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