26 de abril de 2024
Colunistas Joseph Agamol

Sobre a queima de fogos

Sou totalmente contrário a fogos de artifício. Mas é totalmente e MÊRMO, viu, mêrmão, e amigos e vizinhos?

Imagem: Google Imagens – Agência Brasil – EBC

Pronto. Se você for a favor de queimar (ops), pode parar a leitura aqui. Prossiga por sua conta e risco. Só não venha me encher os pacová nos comentários: vá lá no seu perfil e publique uma defesa apaixonada dos fogos de artifício. Combinado? Se mesmo assim insistir, seu comentário inconveniente será deletado. Isso aqui não é uma democracia. Têje avisado.

Então. Eu sou nascido e criado na favela. Para quem conhece a geografia carioca, mais precisamente ali pertinho do Morro do Adeus, que faz parte da aprazível e pacata região do Complexo do Alemão. Morei ali por anos, até me mudar para a Lapa, e, há quase seis anos, deixar o Rio de Janeiro e vir para o interior de São Paulo.

Quando era só um menininho, eu costumava subir o morro com meu vô – adorava a vista da cidade aos meus pés, a quietude, as cabras que habitavam ali. Lá pelos idos dos anos 80 o Rio começou a descer ladeira abaixo de patins – e eu parei de subir o morro com meu vô. Foi nessa época também que tive uma cachorrinha: Kelly. Homenagem à Kelly, do seriado “As Panteras”, idosos recordarão.

“Cachorrinha” é licença poética: Kelly era uma mestiça enorme, quase do tamanho de um pastor alemão. Lembro que, em ocasiões de queima de fogos, ela, filhotinha ainda, corria e se enfiava em um buraco embaixo do tanque de lavar roupa. Adulta, continuava a se esconder no mesmo lugar, aterrorizada – e para tirar o corpanzil trêmulo de dentro do buraco onde ela quase não cabia mais?

Depois que o Rio acelerou ainda mais sua simbólica descida ladeira abaixo de patins, aos fogos ocasionais vieram se juntar os tiroteios. Cansei de adormecer debaixo do som dos estampidos próximos. Passei a conseguir reconhecer com destreza militar as armas e calibres que os produziam. Às vezes os tiroteios duravam a noite inteira.

O tempo passou e eu parei de me surpreender com os sons de disparos na noite – na verdade, me surpreendia era quando eles não aconteciam! Mas, assim como minha cachorrinha Kelly, eu jamais me acostumei com eles. Acho que nenhum ser humano se acostuma de verdade com a ideia de que, tão perto, humanos estão a se matar. Acho que por isso entendo perfeitamente o terror dos animais com a queima de fogos.

À essa altura do texto, alguém pode estar a resmungar:

“ain, seu FRESCO, é só uma vez por ano, os bichos não vão morrer por ISSO! E é só hoje que as pessoas reclamam, antes ninguém reclamava!”

Amiguinho, antes era a mesma coisa: só não havia internet. O caso da Kelly, por exemplo, data de pelo menos 40 anos – já que tenho 56. E não, não é SÓ UMA VEZ AO ANO – queimas de fogos ocorrem no dia 31, e, por mais insólito que eu possa achar, de uns tempos para cá, também no dia 24. E à meia-noite e à uma da manhã – que, afinal, é a VERDADEIRA meia noite, quando havia o horário de verão, não é? Queimas de fogos ocorrem quando o seu time é campeão – o que pode acontecer até 5 vezes ao ano! Ah! E quando o odioso adversário perde também. Ocorrem em comemorações da prefeitura, do Estado, de igrejas diversas, até em aniversários, pô!

Eu acho muito bonito o espetáculo dos fogos de artifício no céu. Mas não creio que a beleza justifique causar dor a tantos para um prazer tão fugaz. Sim, tantos. Animais domésticos e selvagens. Idosos. Bebês.

O meu amigo mau humorado ali de cima pode redarguir de novo:

“Ain, mas é a TRADIÇÃO!”

Sim, é a tradição – mas era tradição também um homem dar uma clavada na cabeça de uma mulher e a arrastar pelo cabelo, não era? Há uma parcela significativa de pessoas que se dizem “de direita” que, a pretexto de criticar o politicamente correto, acham que ser escroto é bacana, é cool, é anti-stablishment. Só que não é. Você pode ser conservador, ou “direita”, como queira, e solidarizar-se com a dor alheia.

Na verdade, ser conservador é, em parte significativa, ter e manter essa empatia. A palavrinha é desgastada, mas o sentimento é verdadeiro.

Experimente.

Joseph Agamol

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

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