Corriam os anos 80. O local, um bairro do subúrbio carioca, ali, pertinho do que viria a ser conhecido como “Complexo do Alemão”. Sim, violência havia, alguma, esporádica e ocasional, quase coreografada, como em um roteiro de Tarantino, não a violência sistêmica, corrosiva e corruptora de hoje.
A rotina tinha suas asperezas cotidianas, contrapondo-se às suavidades impremeditáveis – apenas a extraordinariedade da vida, em seu eterno fluir e refluir, pedindo da gente é coragem, como lembrou Guimarães Rosa, ele próprio um extraordinário impremeditável.
Havia uma criança. Com seus oito anos, cumpria o costume das crianças, envolvidas, sem o saber, no esquenta e esfria, no aperta e afrouxa, no sossega e desinquieta da Vida. Convicta de que teria água para beber na rua, mangas na mangueira e ciranda jogada na calçada. Incertezas? Ao acordar, haveria almoço? Rudezas. Mas Tom Jobim tinha acabado de lançar o disco contendo ”Águas de Março”. Salvamentos. Suavidades.
Em meio aos rituais da existência, a criança descobriu um tesouro: um armário, repleto de livros. De todos os autores. Brasileiros, quando brasileiros eram mestres da arte de escrever. Alemães. Russos. Judeus.
Alencar. Vinicius. Drummond. Cecília. Graciliano. Machado. Veríssimo. Não eram nomes. Eram palavras mágicas, chaves mestras que abri (g) am um portal para outros mundos. O armário era um armário de Nárnia. Os livros a pegaram pela mão. E a criança leu.
E, lendo, descobriu e viveu mil outras vidas além, transcendendo a realidade nem sempre suave, nem sempre sutil, vestindo outras peles como se suas fossem, imergindo em outras eras como se de fato lhe coubessem, absorvendo outras almas como se fosse seu destino, e sorvendo cada porção de existência como se reais fossem.
E eram.
Literatura é um superpoder.
E, nesse exato momento, há meninos e meninas encontrando as palavras mágicas.
Protegê-las deve ser uma missão.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.
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