29 de abril de 2024
Colunistas Fernando Gabeira

O estranho mundo a que o Brasil voltou

O Brasil voltou, diz o slogan internacional do País, rompendo com a era de isolamento de Bolsonaro. O Brasil é de novo um protagonista, afirmam os jornais. De fato, num mesmo período de tempo o País ocupou a presidência do Conselho de Segurança (CS) da ONU, do G-20 e do Mercosul. Antes mesmo de tomar posse, Lula foi ao Egito e afirmou, no discurso em Sharm el-Sheik, que o País protegeria a Amazônia e se empenharia, em nível global, no combate às mudanças climáticas. De uma só vez, o Brasil desfazia o nó do isolamento e indicava que iria considerar seus recursos naturais com a importância estratégica que mereciam.

Ocorre que o mundo ao qual o Brasil estava voltando vivia também uma guerra na Europa. As guerras no Iêmen ou em vários países africanos não aparecem na cena internacional. A Rússia invadira a Ucrânia e era preciso se posicionar.

Lula reagiu de acordo com os princípios da política externa nacional: buscar soluções pacíficas e negociadas para os conflitos. Mas seu desejo de conciliar acabou colidindo com o próprio discurso. A Ucrânia torceu o nariz para a sua afirmação de que numa guerra a culpa era dos dois. E os países ocidentais não receberam bem sua crítica sobre o envio de armas para a Ucrânia. O pêndulo poderia ter se voltado para o país invadido. Mas o Brasil acabou parecendo ser mais simpático a Putin.

Não sei explicar essa ligeira tendência. Creio que a Rússia ainda é vista a partir da literatura da revolução e, mesmo, de seu combate contra as tropas hitleristas na Segunda Guerra.

Quando fui a Rússia, na Copa de 2018, pesquisei uma dúzia de livros sobre a saga da oposição e os meandros do governo Putin. Constatei que quase todos eram desconhecidos no Brasil. A repressão a manifestantes democráticos, o envenenamento de opositores, o flerte da Rússia de Putin com a extrema direita, tudo isso passa muito rápido. Ainda agora, a decisão do governo Putin de criminalizar o movimento LGBT e igualá-lo ao extremismo não é vista como parte de um todo reacionário e coerente.

Putin é um criminoso procurado pelo Tribunal Penal Internacional (TPI). A tendência do governo é de relativizar essa acusação. Não se trata só de sermos signatários do tratado que criou o tribunal. O problema é que, acossados pelos desmandos de Bolsonaro, o TPI foi usado como defesa. Valeria para Bolsonaro e não vale para Putin.

O segundo grande momento do ano foi o atentado terrorista do Hamas, matando e queimando crianças e idosos e violentando mulheres. Lula afirmou que era um atentado terrorista. Mas o governo não classifica o Hamas como terrorista porque a ONU não o faz. Na presidência do CS da ONU, o Brasil realizou um grande trabalho pelo cessar-fogo. A moção que redigiu e encaminhou teve 12 votos a favor e só não vigorou por causa do veto dos EUA. De qualquer maneira, abriu caminho para uma proposta mais branda de Malta, que acabou sendo aceita. Da mesma forma, a diplomacia brasileira conseguiu retirar com êxito quem estava em Israel, na Cisjordânia e mesmo na Faixa de Gaza. Isso passa aos brasileiros a sensação de que não são esquecidos quando colhidos por grandes problemas no exterior.

Lula tem criticado as ações de Israel, que, no combate ao Hamas, está punindo toda a população de Gaza. A preocupação com os civis em Gaza é internacional. O próprio papa usou a expressão terrorismo para definir a matança generalizada. Países como a Irlanda também criticam a maneira como Israel desenvolve a luta. Não apoiar incondicionalmente Netanyahu não significa necessariamente voltar as costas para Israel, desde que se mantenha a visão estratégica de dois Estados como saída para a crise. Um ou outro adjetivo, uma ou outra frase não chegam a abalar relações entre países. Se nos atemos exclusivamente às manifestações diplomáticas oficiais, o Brasil consegue navegar bem nesta crise e deve retirar ainda mais 180 pessoas de Gaza.

Só que a turbulência parece se voltar também para a América do Sul. Neste campo, o papel de mediador do Brasil é essencial. A Venezuela quer tomar Essequibo da Guiana. É uma região de 159 mil km2 com 11 bilhões de barris de petróleo e muito minério. Americanos e chineses a exploram. Mas tudo acontece perto da fronteira do Brasil e, caso a crise se acentue, depois do plebiscito venezuelano, o País terá um importante papel. Lula já indicou sua posição. Não parece apoiar nenhum tipo de conflito e certamente será um mediador decisivo, caso aconteça algo.

Nunca se sabe se Maduro fez o plebiscito só para se fortalecer, pois a oposição não poderia votar contra. Pode ser que o use apenas como um trunfo nas eleições presidenciais. Difícil prever com precisão os passos de Maduro. É um homem que recebe orientação de passarinhos, assim como Milei recebe orientação de um cachorro.

O ano que começou reverberando o discurso de Sharm el-Sheik termina com outro discurso, de Dubai. O Brasil já não promete só mudar de rumo, mas se dispõe a liderar o mundo no campo ambiental, pelo exemplo.

Dubai foi sede da COP mais ambígua da História. Seu presidente, o sultão Al Jaber, dirige a empresa petroleira dos Emirados e deu declarações duvidando da condenação científica dos combustíveis fósseis. E o Brasil, candidato a líder na transição energética mundial, aproveitou a oportunidade para aderir à Opep+. O realismo mágico sul-americano parece ter se expandido para o mundo.

Artigo publicado no Estadão em 08/12/2023

Fonte: Blog do Gabeira

Fernando Gabeira

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *