Nessas que foram suas últimas semanas de vida, Alfredo falou comigo, longamente, ao telefone.
Usava máscara e, às vezes, falava em movimento. Nem sempre o ouvia bem. Além disso, a ligação caia muitas vezes e nos divertíamos como se estivessem sendo ouvidos.
Mas não tínhamos mais nem a saudável dose de paranoia. Quem se interessa por ouvir teses sobre aquecimento global. Nosso censor dormiria com a testa apoiada na mesa.
Foi exatamente a complexidade do tema que fez com que Alfredo alternasse várias histórias de sua vida com suas reflexões sobre a necessidade de revolucionar o mundo para que a vida não se torne impossível com o aquecimento.
Ele decidiu que este era o tema central, o mais importante, que influenciaria todos os outros. E disse que ficou muito impressionado com uma esquimó chamada Sheila, se me lembro bem. Ela contou que às vezes fazia calor no Ártico e que isso era um prenúncio do que o planeta teria de enfrentar.
Alfredo achava que era preciso uma tríplice revolução: cultural, tecnológica e financeira. A cultural segue seu rumo lento, a tecnológica é mais fácil e tem dinâmica própria. Restava a financeira: ele via a necessidade de se criar algo como o padrão ouro para o carbono neutralizado. Cada tonelada de carbono aprisionada na natureza ou mesmo evitada na produção teria um valor e passaria a orientar a economia.
Na sua opinião, a Alemanha e a Noruega investiam na Amazônia com essa perspectiva: de compensar o Brasil por evitar a produção de CO2 com o desmatamento.
Infelizmente , Bolsonaro e Salles não compreendem isso. Viram uma manobra estrangeira nesse projeto e o trataram como tratam todos os temas importantes sob o ótica da teoria da conspiração.
Foi por aí que Bolsonaro interpretou a pandemia de coronavírus: uma conspiração contra seu governo.
O livro Descarbonário o ultimo de Alfredo Sirkis conta muitas histórias. Nem todas pude ler ainda, embora tenha participado do lançamento virtual.
De vez em quando escreverei sobre ele e sempre vou enfatizar sua luta que na verdade é a luta da nossa geração em homenagem à dos nossos filhos e netos.
Não me interessei muito pelos fatos do dia. No entanto, não pude deixar de me impressionar com o fato de terem encontrado R$ 6 milhões em dinheiro na casa do ex-secretário de saúde do Rio.
Que pena o que acontece por aqui. Depois da devastadora corrupção de Cabral, parece que os métodos continuam como se nada tivesse acontecido. Ou melhor, continuam numa pandemia, como se o desvio do dinheiro público fosse uma prática eterna, que usa todas as oportunidades, inclusive as mais trágicas, para consumar seu processo de acumulação.
Fonte: Blog do Gabeira
Jornalista e escritor. Escreve atualmente para O Globo e para o Estadão.