10 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Faz parte do show

O silêncio gritante dos guardiões amazônicos.

Foto: Helvio

Telefonei anteontem para um velho amigo, morador de Manaus. Surpresa agradável, foram muitos anos sem contato. Natural do Pará, ele fez carreira por aqui e retornou às origens graças ao segundo casamento com uma bela amazonense. Ouvindo sua voz, estranhei:

– Tá gripado, cara? Covid?

Ele riu:

– Todo mundo usando máscara de novo. É a fumaça; muita fumaça.

Contou-me que pelo terceiro dia consecutivo o amanhecer em Manaus parecia um espetáculo apocalíptico; alvorada escura, sufocante. As cinzas voam e cobrem roupas, móveis; caem nos pratos, na cerveja, nos olhos. Falou também da dificuldade para respirar, tosse persistente, narizes irritados, dores de garganta. Antes de tomar banho, moradores sacodem as toalhas – caso contrário, ao secarem a pele, transformam-se em zebras; rabiscos negros pelo corpo.

Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), a região registrou, só em outubro, 22.061 focos de incêndio – 8.150 a mais do que em outubro do ano passado; uma alta de cerca de 60%. Detalhe: no Amazonas foram 3.858 focos de incêndio, o maior número para o mês desde 1998, quando começou a série histórica do instituto. No Pará, outros 11.378 também em outubro – o maior número registrado nesta época desde 2008. E nas TVs, silenciadas pelo retorno da perdulária e amaciante publicidade oficial, apenas vagas menções ao fato ou versões passa-pano.

De acordo com o site World Air Quality Index, Manaus entrou para o grupo das cidades com pior qualidade de ar no mundo. A prefeitura tenta melhorar a coisa molhando ruas, praças e canteiros com água levada dos rios pelos caminhões-pipa. Porém, a seca, que neste ano coincidiu com as queimadas, complica a situação.

Mesmo num céu adverso, a internet é uma nuvem carregada de lembranças curiosas. Há dois anos um grupo de artistas produziu um jingle choroso que exortava à salvação da selva amazônica – segundo eles, ameaçada a fogo pelo então presidente. Eram cantores conhecidos: cariocas, mineiros, paulistas e os baianos de sempre.

Estava na cara que não defendiam os recursos naturais, mas os recursos financeiros da Lei Rouanet. Revendo o vídeo que circula agora acompanhado das merecidas zoações, qualquer indivíduo de QI mediano percebe que o sumiço e o silêncio dos inflamados trovadores ambientais nada mais são que cinzas do oportunismo e da hipocrisia reinantes – não só na Amazônia, mas no país inteiro, contaminado pelo ativismo midiático dos revolucionários de iPhones.

E o que diz o atual ocupante da Presidência sobre os incêndios? Rapidinho, tira o dele da reta, como de hábito. Para esse idoso gestor que associa a queda do PIB nacional aos feriados prolongados, a culpa da desgraça amazônica é de quem, de quem? De seu antecessor! Uau! Já a ministra do Meio Ambiente atribui a catástrofe a enigmáticos “nanomísseis” que estaríamos lançando na atmosfera. Se valem fantasias, então segue a minha: é tudo culpa do El Niño entrando na adolescência, hormônios fervendo, correndo apaixonado atrás de La Niña.

Tais como os artistas nacionais caladinhos, DiCaprio, Greta, Roger Waters, Ruffalo e outros famosos também sumiram e não deram nem um pio sobre o aumento assustador dos incêndios da Amazônia em 2023. Nenhuma surpresa: afinal, defender a natureza, bichos, nativos, índios, refugiados ou minorias virou apenas mais uma face daquela artimanha de inflar o ego defronte às câmeras. É só parte do show.

Fonte: O Tempo

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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