20 de maio de 2024
Colunistas Fernando Fabbrini

Aposentadoria dos sonhos

Receita perfeita para os últimos anos de sua vida.

Foto: Editoria de Arte

Advirto que são necessários alguns pré-requisitos para que a fórmula funcione e garanta a plenitude do prazer, alegria e conforto quando você, assim como todos os demais seres vivos, entrar na reta final, rumo à eternidade, para então virar pó.

O ideal é que você seja um artista, cantor, roqueiro – e que já tenha desfrutado de momentos de glória no passado. Se for mulher (espécime do sexo feminino dotada originalmente de mamas, útero, ovários e demais itens do aparelho reprodutor), melhor ainda. E, se for famosa no mundo inteiro, inclusive entre aborígenes do “outback” australiano, excelente.

Preenchidas tais condições, certamente você será bilionária, terá guarda-roupas invejáveis, das melhores grifes, automóveis exclusivos, jatinhos personalizados, mansões espalhadas pelos cinco continentes – como aquela absurdamente luxuosa em Upper East Side, bairro chiquérrimo de Manhattan, com quatro andares, 26 cômodos, nove lareiras e 14 banheiros – e dezenas de puxa-sacos a mimando.

É normal que, ao olhar-se no espelho, certas visões possam deprimi-la. Apesar das cirurgias frequentes, implantes, remendos, aplicações, colágenos, sais e vitaminas, o corpo manda avisos de que não aguenta mais. O fôlego, após horas de ensaio, não é o de outrora. As rugas não somem nem sob dez camadas de pó.

Músculos, tecidos adiposos, cartilagens, vales e montanhas murcham e despencam. Então, coragem: é hora exata de botar em prática a estratégia para a aposentadoria dos seus sonhos. O nome dela é “turnê mundial”.

Primeiro, lance uma exorbitante campanha de marketing, convocando fãs saudosos para a verem outra vez em cena. Planeje o repertório sempre mantendo velhos “hits”, porque boa parte dos fãs, assim como você, estará beirando os 70, e lembranças poderão estimular aqueles acometidos pelo Alzheimer.

Feito o roteiro, capriche na escolha do maravilhoso, do inesquecível show-encerramento. Convém marcá-lo para algum país ensolarado, informal, selvagem, pleno de belezas naturais. Melhor ainda se lá grande parte da população passar fome, for analfabeta, ignorante, dominada pelo tráfico e a corrupção, viva de sonhos de riqueza, futilidade e ostentação. Seus empresários deverão fechar contratos bilionários com emissoras, anunciantes privados e – importantíssimo! – com o poder público. Afinal, é nele que se oculta o cofre que os governantes abrem com as chaves do infalível sistema latino “panis et circenses”.

Tudo certo? Então, suba ao palco. Cante, pule, corra de um lado para o outro, feito doida, enquanto pode. Nos intervalos, para poupar o fôlego, agarre o microfone e exorte temas apaixonantes com playback triste. Salve o planeta; denuncie a extinção das gazelas do Burundi, o trabalho escravo no Cazaquistão, uma guerra costumeira no Oriente, os preconceitos contra minorias, a secular violência humana – qualquer coisa serve. Acrescente insinuações de apologia às drogas, marginalidade, rebeldia adolescente e toda pornografia possível, porque sacanagem agora é “cult”.

Embora tenha sido concebida, gerada, criada e mantida pelo universo capitalista, lambuzando-se em tudo que ele lhe proporciona, é recomendável enfeitar o cenário com esquerdismo elegante. Che Guevara ou outro mártir comunista sempre pega bem. No geral, deixe claro que a vida – esta misteriosa passagem nossa pelo planeta – é apenas uma ocasião egoísta e enlouquecida de buscar prazer por meio de todos os poros, sobretudo via fossas nasais e demais cavidades corpóreas.

Para encerrar, cante aquela música que todo mundo sabe balançando a bandeira e levando a plateia à loucura. E não se esqueça: jamais cometa o erro de citar problemas do país que a acolheu com tanto carinho e tantos dólares. Imagine se tal nação estiver passando por uma calamidade que mata, afeta milhares e revela o descaso histórico dos dirigentes pelas reais questões de lá? Azar dela, ué.

Fernando Fabbrini

Escritor e colunista de O TEMPO

Escritor e colunista de O TEMPO

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