De: Ralph Thomas, Reino Unido, 1956
(Disponível na Franciellen Taynara do YouTube em 3/2025.)
Em 1956, 17 anos depois de a seriíssima, duríssima agente soviética Ninotchka-Greta Garbo desembarcar em Paris para botar na linha três camaradas da Câmara Russa de Comércio que haviam se encantado com as práticas do decadente capitalismo, desembarca na Berlim Ocidental uma seriíssima, duríssima capitã da aviação soviética, Vinka Kovelenko.
A capitã Vinka Kovelenko de The Iron Petticoat, no Brasil A Saia de Ferro – uma evidente referência à Cortina de Ferro, como eram chamadas pela propaganda do imperialismo ianque a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas e suas nações irmãs do Leste Europeu – vem na pele de outra gigantesca estrela da Hollywood dos anos dourados, Katharine Hepburn.
(Aahnn… Talvez fosse bom avisar para o eventual leitor que chegou neste texto por acaso e não conhece nada do + de 50 Anos de Filmes que alguns trechos dos parágrafos acima contêm alguma ironia…)
Se a companheira Ninotchka chegou a Paris em 1939 como uma corregedora de uma missão de compatriotas, a capitã aviadora Vinka Kovelenko pousou em Berlim – conforme explica ao coronel do Exército dos Estados Unidos a quem é conduzida – porque perdeu a paciência.
– “Com os comunistas?” – pergunta o coronel Tarbell (Alan Gifford), felicíssimo com a perspectiva de estar diante de uma desertora disposta a revelar ao mundo as mazelas do comunismo.
– “Não”, responde ela. “Com o sexo masculino.”

O diálogo acontece bem no começo da narrativa. O filme – uma produção britânica dirigida por Ralph Thomas, “especializado num cinema de grande consumo”, segundo o estudioso Jean Tulard – começa com um letreiro informando o onde e um quando brincalhão: “”Quartel-general da Força Aérea dos EUA na Alemanha – Era uma vez…” Um grande painel com as imagens de radar da região. Um Mig soviético é detectado; os oficiais dão ordem para que dois caças fiquem lado a lado do avião inimigo, e o façam pousar na base aérea.
Logo o solitário aviador vindo da Cortina de Ferro é conduzido até a presença do comandante da base, o coronel Tarbell – e revela-se que o aviador é uma aviadora.
Eis o diálogo entre o coronel dos Estados Unidos e a capitã da União Soviética, assim que ela é levada para a sala dele e bate continência:
Ele: – “Entende inglês?”
Ela (de óculos escuros, capacete, lenço em volta do pescoço, sobretudo com golas levantadas) : – “Naturalmente”.
Ela: – “Capitão Vinka Kovelenko. Piloto.”
Ele: – “Importa-se de tirar o capacete?”
Ela retira o capacete. O coronel faz cara de surpresa – como se não tivesse percebido que a voz era obviamente da Katharine Hepburn, perdão, que a voz era obviamente de uma mulher.
Ele: – “Uma mulher!”
Ela: – “Correto, senhor!”
Ele: – “Por favor, sente-se, senhora Kovelenko.”
Ela: – “Capitã Kovelenko! Eu não me sento se há um coronel de pé.”
Ele pede perdão e se senta diante de sua mesa ao lado da soviética recém-chegada.
Ele: – “Estamos felizes com a chegada de mais uma refugiada política da Cortina de Ferro.”
Ela: – “Eu não sou uma refugiada política.”
Ele: – “Deixe-me colocar assim: estamos felizes em receber uma russa inteligente que acredita que o comunismo é desagradável.”
O adjetivo que o roteirista Ben Hecht botou na boca do coronel Tarbell é “distasteful”.
Ela: – “Isto é falso.”
Ele: – “O quê?”
Ela: – “Que eu me oponho ao comunismo. É a salvação do mundo e o sonho grandioso dos seus habitantes.”
Ela se põe de pé ao fazer esse discurso.
Ele: – “Capitã Kovelenko, deixe de rodeios e explique por que violou nosso espaço aéreo.”
Ela (ainda de pé, e falando alto, como se estivesse discursando numa assembleia do Partido): – “Sem problemas. É muito simples. Eu perdi a paciência.”
Ele: – “Com os comunistas?”
Ela: – “Não. Com o sexo masculino.”
Ele: – “Não poderia ser mais específica?”
Ela: – “Eu confessei. O que mais quer?” Ela se senta novamente.
Ele: – “Quero alguns fatos. Não voou da Rússia e entrou em território americano só porque levou um fora de algum namorado.”
Ela explica: – “Eu me diriga ´para o meu novo posto quando ouvi o anúncio de que o capitão Ossip Gonovitch tinha sido nomeado o comandante da minha esquadrilha. E eu permaneci com o posto de capitã. É um caso de arcaica discriminação anti-feminina. Gonovitch é um bêbado. Já derrubou quatro aviões, é daltônico, é o pior piloto da minha esquadrilha. Isso não teria acontecido se Stálin ainda fosse vivo. Ele não temia as mulheres.”
Ele (depois de dar um sorrisinho): – “Posso entender como se sente, capitã Kovelenko.”
Ela (levantando-se e fazendo continência): “Obrigado”.
Ele: – “Eu diria que é mais complexo do que a senhora pensa…”
Ela: – “Se tem a intenção de me submeter a uma lavagem cerebral, não digo mais uma palavra a partir de agora.
Ele: “Nós não fazemos isso. Isso é um procedimento comunista, não o nosso.”
Ela: – “Não digo mais uma palavra.”
Ele: “Provavelmente perdeu a paciência porque há coisas que a incomodam e a desiludem no comunismo.”
Ela: – “Suas torturas não tirarão de mim uma mentira, nem em mil anos.”
Ele: – “Ninguém vai torturá-la nem por um segundo. Quando digo que está desiludida com o comunismo, refiro-me ao seu subconsciente.”
Ela (profundamente irada, bravíssima): – “Um bom comunista não tem subconsciente!!!”
Neste momento, entra na sala do comandante da base aérea um militar – o papel de Bob Hope -, dizendo: – “Desculpe interromper, Newt, mas você se esqueceu de assinar minha licença.”
Estamos, neste momento, com sete minutos de filme.

Mais informações a partir do próximo intertítulo
Com sete minutos de filme, apertei a pausa e a tecla de parar.
Sou absolutamente apaixonado pelo cinema dos anos de ouro de Hollywood, dos anos 30 aos anos 50. Sou fã dedicado de Katharine Hepburn, uma das melhores atrizes destes 130 anos de cinema. Gosto muito de comédias, até mesmo de comedinhas bobas. Gosto demais de filmes que falem de questões políticas, como a rivalidade Estados Unidos x União Soviética, a guerra fria, o embate de diferentes visões do mundo.
E, além disso, tenho estômago forte; como gosto de filmes, aguento ver até porcarias – mas este The Iron Petticoat se mostra, nestes primeiros sete minutos, ruim demais da conta. Abaixo de qualquer nível bem baixo.
Kate Hepburn está horrorosa, horrível, uma coisa esquemática, patética, caricatural ao extremo.
E Bob Hope, confesso… Aí é um pecado meu: não tenho simpatia algum por esse sujeito.
E então paramos de ver a porcaria. Mary concordou de imediato – a vida é curta demais.
Então, a rigor, The Iron Petticoat poderia ter um registro em um dos meus posts sobre filmes que não consegui ver até o final. Mas, diabo, ele tem Kate Hepburn. Esse absurdo, grotesco diálogo da abertura merece ser transcrito. E então resolvi fazer um post só para o filme, mesmo tendo visto só esse inicinho.
Seguem-se informações objetivas sobre a obra – e algumas opiniões de quem entende.

Diz a Wikipedia:
“Hepburn interpreta uma piloto militar soviética que pousa na Alemanha e, depois de conhecer a vida no Ocidente na companhia do Major Chuck Lockwood feito por Bob Hope, é convertida ao capitalismo. Subtramas mostram Lockwood tentando se casar com uma mulher da classe alta britânica e agentes comunistas tentando forçar o personagem de Hepburn a voltar para a União Soviética.
“A história principal se inspira pesadamente em Ninotchka (1939), de Ernst Lubitsch, com Greta Garbo, e se parece bastante com Jet Pilot, com Janet Leigh como uma pilota russa e John Wayne como um oficial da Força Aérea americana. Jet Pilot (de Josef von Sternberg, no Brasil Estradas do Inferno), inspirado nas deserções reais de pilotos durante a guerra fria, teve as filmagens principais concluídas em 1950, mas só foi lançado em 1957, depois de The Iron Petticoat.”
A biografia de Katharine Hepburn, Uma Mulher Fabulosa, de Anne Edwards, diz que Saia de Ferro “foi realmente um desastre”.
Eis o principal trecho do livro sobre o filme, na tradução de Roberto de Cleto para a edição brasileira de A Remarkable Woman, lançada em 1987 pela Francisco Alves:
“Em janeiro de 1956, Kate foi para Londres filmar The Iron Petticoat (Saia de Ferro), nos estúdios de Pinewood, com Bob Hope, um parceiro bastante inesperado. (Spencer) Tracy a acompanhou, se bem que a imprensa não tivesse se dado conta disso. Nascido em Eltham, Bob Hope tinha deixado a Inglaterra criança, e via nesta sua volta ao país natal como estrela razão suficiente para aceitar um papel normal ao lado de uma estrela da magnitude de Kate. Esta fazia o papel de Capitã Vinka Kovelenko das forças aéreas russas, designada para servir numa base americana na Alemanha.
“Saia de Ferro (originalmente chamada de Not For Money) estava muito próxima de ser uma refilmagem da comédia Ninotchka de 1939, com Greta Garbo e Melvyn Douglas, que teve sucesso, enquanto sua imitação fracassou! Enquanto Garbo teve liberdade total de criação no papel do oficial russa que se americaniza, Hope chegou com uma equipe de escritores de piadas que imediatamente começaram a reescrever o original fazendo com que o filme ficasse sendo praticamente só dele, enquanto o papel de Kate ia encolhendo até terminar com ela quase fazendo escada para ele.”
Em uma nota de pé de página, fala-se de Bob Hope, “certamente um dos maiores comediantes do século XX”: “Ele é inesquecível pela série de filmes que fez com Bing Crosby e Dorothy Lamour (em inglês, todos os filmes tinham no título a palavras road – estrada, caminho – Road to Singapure, Road to Zanzibar, etc. que em português se chamou Tentação em Zanzibar – porque aqui tinham nomes diferentes) e seus shows e especiais de televisão. Ele sempre viajou, em tempo de guerra ou de paz, para divertir soldados americanos em outras terras.”
E o livro prossegue:
“Ben Hecht, autor da história original, não só se afastou do projeto como pediu que seu nome não constasse dos créditos. Os escritores de Hope assumiram o controle total e o filme começou a parecer como um de Hope e Crosby ‘a caminho’ de Moscou. Finalmente as melhores cenas de Kate (de acordo com uma carta aberta de Hecht publicada em The Hollywood Reporter) ‘foram excluídas do filme à base de maçarico’.”
É controversa a afirmação de que Ben Hecht foi o autor da história original. A própria biografia de Kate Hepburn e também o IMDb citam que o roteiro se baseou em uma história de Harry Saltzman (1915-1994), que ficaria famoso por ser o produtor dos primeiros filmes da série 007 – O Satânico Dr. No (1962), Moscou Contra 007 (1963), 007 contra Goldfinger (1964) e outros.
O que parece mesmo ser inegável, indiscutível, é que o filme é uma porcaria. Diz o IMDb:
“A dupla Katharine Hepburn e Bob Hope, originalmente anunciada como ‘inspirada’, acabou sendo um dos elementos em que os críticos de cinema quase universalmente se concentraram quando fizeram deste um dos filmes mais criticamente vilipendiados da carreira de cada uma das estrelas. ‘Se isso era para ser uma farsa’, escreveu Bosley Crowther no The New York Times, ‘foi bem-sucedido’.
Anotação em março de 2025
A Saia de Ferro/The Iron Petticoat
De Ralph Thomas, Reino Unido, 1956
Com Bob Hope (capitão Chuck Lockwood),
Katharine Hepburn (capitã Vinka Kovelenko),
James Robertson Justice (coronel Sklarnoff), Robert Helpmann (Ivan Kropotkin), David Kossoff (dr. Dubratz), Alan Gifford (coronel Newton Tarbell), Paul Carpenter (major Lewis), Noelle Middleton (Connie), Nicholas Phipps (Tony Mallard), Sidney James (Paul), Alexander Gauge (senador Holly), Doris Goddard (Maria|), Tutte Lemkow (Sutsiyawa), Sandra Dorne (Tityana)
Roteiro Ben Hecht
Baseado em história de Harry Saltzman (não creditado)
Fotografia Ernest Steward
Música Benjamin Frankel
Montagem Frederick Wilson
Direção de arte Carmen Dillon
Figurinos Yvonne Caffin
Produção Betty E. Box, Remus, Hope Enterprises, London Film Productions, Romulus Films.
P&B, 87 min
Fonte: 50 anos de filmes

Jornalista, ex-editor-executivo do Jornal O Estado de S. Paulo e apreciador de filmes e editor do site 50 anos de filmes.