Meu Senhor, tende piedade do dia 9 de outubro de 1962 que me viu nascer 60 anos depois. Mas tende piedade também do dia 2 de outubro de 2022.
Tende piedade dos que andam de ônibus, cheios de gente vazia e que, no longo percurso, sonham com automóveis. Mas tende piedade também dos que andam de automóvel desejando asas.
Tende piedade das famílias suburbanas. Mas tende mais piedade ainda do caviar que passa e inventa a doutrina da mortadela e da guilhotina.
Tende muita piedade do mocinho franzino. Mas tende mais piedade do atleta que vai morrer com uma saúde danada, lutando, remando, nadando.
Tende piedade dos doentes de morte. Mas tende piedade também dos doentes de vida, esperando o bonde e Godot.
Tende infinita piedade dos vendedores de passarinhos. E tende piedade também, menor embora, dos vendedores de ilusão.
Tende piedade do Vinicius de Moraes que inspirou meus piores amores, minhas melhores intenções e minhas mais inúteis palavras como as que ora repito e torturo.
Tende piedade do meu notebook e do meu celular, hoje, nas profundezas do Titanic que é minha pilha de roupas sujas.
Tende piedade dos sapateiros. Mas lembrai-vos também dos que se calçam de novo. Nada pior que um sapato apertado, Senhor Deus.
Tende piedade dos homens úteis como os dentistas e os proctologistas, que sofrem de utilidade e vivem para fazer sofrer. Mas tende mais piedade dos médicos, que muito gostariam de ser veterinários, Senhor.
Tende piedade dos políticos, pela sua fala fácil, olhar brilhante e segurança dos gestos de mão. Mas tende mais piedade ainda dos seus criados, próximos e parentes. Fazei, Senhor, com que deles não saiam políticos também.
E no longo capítulo das mulheres, Senhor, tende piedade das mulheres. Castigai minha alma, mas tende piedade das mulheres. Enlouquecei meu espírito, mas tende piedade das mulheres. Ulcerai minha carne, mas tende piedade das mulheres!
Tende piedade da moça feia que serve na vida de casa, comida e roupa lavada da moça bonita. Mas tende mais piedade ainda da moça bonita, que o homem molesta – que o homem não presta, não presta, meu Deus!
Tende piedade, Senhor, das primeiras namoradas, de corpo hermético e coração patético, que se creem vestidas, mas que em verdade vivem nuas.
Tende piedade, Senhor, de todas as mulheres, que ninguém mais merece tanto amor e amizade, que ninguém mais deseja tanta poesia e sinceridade, que ninguém mais precisa tanto de alegria e serenidade.
Tende infinita piedade delas, Senhor, que são puras, que são Lolitas e são trágicas e são belas, que caminham ao sopro dos ventos e que pecam e que têm a única emoção da vida nelas.
E no infinito capítulo dos tolos, tende piedade dos idiotas, porque “quando você morre, você não sabe que está morto e por isso quem sofre são os outros. É a mesma coisa quando você é idiota”.
Tende piedade do poder dos imbecis que dominam o mundo porque ignoram as “Leis Fundamentais da Estupidez Humana”, de Carlo Maria Cipolla.
As cinco leis que confirmam nosso maior medo: pessoas estúpidas mandam no mundo! Desde tempos imemoriais, uma poderosa força do Mal vem prejudicando o bem-estar e a felicidade dos homens.
Ela é mais poderosa que a milícia, o tráfico de drogas ou o exército. Seus efeitos são catastróficos e globais. Ela se encontra em salas de reunião e bares de todo o mundo. Essa força gigantesca é a estupidez humana.
Tende piedade dos que votam pela culatra. Mas tende ainda mais piedade dos que morrem deste tiro.
Tende piedade dos que não sabem o que fazem, mas tende piedade infinita daqueles que sabem o que fizeram no verão passado, de olho no inverno das almas.
Tende piedade de Barrabás e de seus cúmplices, mas ainda mais da cruz que nos carrega.
Tende piedade dos brasileiros e principalmente do País do Futuro do Pretérito do Presente.
Tende piedade da minha paciência e do número Zero. Tende paciência da rosquinha e muito mais do banguela. Do diamante e ainda mais do falso brilhante.
Tende piedade dos fracos neste mundo onde os fortes não têm vez e voz. E o mundo está neles. E a loucura reside nesse mundo.
Tende piedade, Senhor, das santas mulheres e vinde a mim as pecadoras.
Tende piedade dos meninos velhos, dos homens humilhados – sede enfim, piedoso com todos, que tudo merece piedade.
PS.: E se piedade vos sobrar, Senhor, tende piedade de mim!
Jornalista, escritor, escreveu no Jornal O Tempo e já publicou dois livros.