20 de abril de 2024
Sergio Vaz

Trilhas / Tracks

Nota: ★★★☆
Em 1975, o ano em que minha filha nasceu, uma moça chamada Robyn Davidson, que, como eu, estava com 25 anos de idade, começou a se preparar para fazer uma travessia de cerca de 2,7 mil quilômetros por uma região desértica e semidesértica da Austrália.
Naquele ano de 1975, ela se mudou de Sydney, a maior metrópole do país, para uma cidadezinha chamada Alice Springs, situada bem no meio da gigantesca ilha-continente, para, ali, fazer um treinamento intensivo de como cuidar de camelos – já que atravessaria meia Austrália sem outro ser humano sequer, apenas na companhia da maior amiga, a cadela Diggity, e alguns camelos que carregariam sua bagagem.
Não sei exatamente o que eu queria fazer da vida, aos 25 anos, em 1975, o ano em que minha filha nasceu. Já não tinha mais tanta esperança de ajudar a mudar o mundo, mas creio que me empenhava em fazer a minha pequena parte, ser uma pessoa e um profissional correto, digno, decente.
Aos 25 anos, pode-se querer muitíssimo mais que isso, é claro. É perfeitamente possível ter planos gigantescos, imensos, grandiosos. Neil Armstrong é bem provável que já tivesse planos de andar na Lua. Há quem aos 25 já tivesse chegado à Lua, ou quase isso: Picasso, Pelé, Garrincha eram gênios reconhecidos nessa idade. John, Paul, George e Ringo já eram mais conhecidos que Jesus Cristo.
Robyn Davidson meteu na cabeça que andaria cerca de 2,7 mil quilômetros, acompanhada apenas por sua cadela Diggity e uns camelos, desde o centro da Austrália até o Oceano Índico.
É preciso haver alguma comparação. Fácil: 2,7 mil quilômetros é exatamente a distância entre São Paulo e o Recife. A garota resolveu caminhar a pé o equivalente à BR-116 entre São Paulo e o Recife – sozinha. Numa região desértica.
Picasso, Pelé, Garrincha, Neil Armstrong, os quatro rapazes de Liverpool, todos já mereceram filmes – vários. Este Tracks, lançado em 2013, finalmente conta a aventura de Robyn Davidson.

Uma jovem magrelinha que trabalha duro

Tracks é uma produção australiana, claro; tem o apoio e a ajuda em dinheiro de várias instituições governamentais australianas. O diretor John Curran é americano – mas a atriz escolhida para fazer o papel de Robyn Davidson, Mia Wasikowska, apesar de ter trabalhado em tantos filmes americanos, é tão australiana quanto Robyn Davidson, quanto a canção “Waltzing Matilda”, quanto os aborígenes. E o que é mais impressionante ainda: ela se parece terrivelmente com Robyn Davidson quando tinha lá seus 25, 27 anos e empreendeu a travessia que a tornaria famosa.
Mia Wasikowska nasceu em Camberra em 1989, e, quando o filme foi lançado, em 2013, estava com 24 anos. Idade perfeita, portanto, para interpretar Robyn Davidson – mas é interessante notar que a atriz tem uma baby face, e parece ter não mais que uns 17 anos.
O filme começa com Robyn chegando à cidadezinha de Alice Springs, junto com a cadela Diggity, carregando uma grande mala e uma bolsa. A voz em off de Mia Waskowska recita uma carta que Robyn deve ter mandado para organizações, entidades, pedindo a colaboração para ajudá-la a empreender sua viagem:
“A viagem não foi concebida como uma aventura no sentido de que eu queira provar ou conquistar alguma coisa. Quando me perguntam por que quero fazer isso, em geral respondo: Por que não?”
É uma visão estranha, esquisita, insólita, essa que temos no início de Tracks: uma garota que parece não ter mais de 20 anos de idade, magrelinha, dando uma impressão de fragilidade imensa, chegando a uma cidade pequena perdida no meio do nada, da coisa alguma – uma cidadezinha que parece saída de um western –, disposta a fazer algo que ninguém já havia feito antes.
Robyn vai se demonstrar uma pessoa de imensa coragem, e de imensa capacidade de suportar situações duras, do sol mais inclemente às temperaturas mais geladas da madrugada no deserto.
Ela mesma se define como uma pessoa que trabalha duro, quando pede emprego à dona de um hotel em Alice Springs. E pouco depois, usando o mesmo argumento, pede emprego a Kurt Posel (Rainer Bock), um sujeito mal encarado que tem uma fazenda de camelos. Posel se dispõe a ensinar a Robyn tudo sobre como cuidar de camelos, ao longo de 8 meses, sem pagar a salário algum – mas prometendo dar a ela dois dos seus animais ao final desse período.

Um bom patrão e depois um patrocínio

O trabalho é duríssimo, mas ela aguenta. E aprende tudo sobre camelos. Mas quando, ao final dos oito meses, pede a Posel os animais que ela havia ganho, ele a manda embora sem qualquer sinal de dó, de respeito pelo ser humano.
Na vida a gente encontra salafrários, maus caracteres, como esse Posel, mas também encontra gente boa, e logo Robyn tem a sorte de conhecer Sallay (John Flaus), um velho descendente de afegãos que tinham se estabelecido interior da Austrália décadas antes. – “Qualquer pessoa que tenha trabalhado oito meses para Posel merece uma nova chance”, ele diz, e acolhe a garota em sua fazenda de camelos.
Daí a alguns meses Robyn já é dona de 3 camelos adultos e mais um filhote que nasceu de uma das que ela havia conquistado com seu trabalho.
E ela recebe, de surpresa, a visita de uma amiga da cidade grande, Annie (Melanie Zanetti), que chega com um grupo grande, um bando de
jovens hippies – estávamos em meados dos anos 1970, afinal. Um deles, um tal Rick Smolan (Adam Driver, excelente), fotógrafo, sugere que Robyn peça o patrocínio da National Geographic.
Depois de alguma hesitação, Robyn escreve para a grande revista – e, depois de algum tempo, recebe uma resposta positiva. A National Geographic aceita investir um dinheiro para financiar os gastos da jovem explorada – só exige, em contrapartida, que um fotógrafo a acompanhe. E o fotógrafo que a revista envia é Rick.
A ideia da garota era fazer a grande travessia sozinha, sem o acompanhamento de outro ser humano sequer. Só ela, a cadela Diggity e os camelos. Acabam chegando a um acordo: ela fará o trajeto sozinha na imensa maior parte do tempo; uma vez por mês, mais ou menos, Rick iria de jipe encontrá-la, para fazer fotos, documentar a aventura – afinal, onde já se viu uma matéria na National Geographic sem fotos?

Robyn e o filme demonstram respeito pelos aborígenes

Não foi aí, nisso que relatei, spoiler algum: isso é o começo do filme. Não marquei, mas creio que, quando Robyn inicia sua viagem, no dia 9 de abril de 1977, e surge na tela o letreiro “Dia 1”, estamos aí com uns 30 minutos dos 112 do filme.
Sim, mas… camelos na Austrália? Não é o país dos cangurus?
Pois é. Ao longo de Tracks, em um diálogo aqui, outro ali, em algumas narrativas da voz em off de Mia Wasikowska-Robyn Davidson, o roteiro de Marion Nelson vai nos dando as informações básicas. Camelos, evidentemente, não são originários da Austrália. Algumas centenas foram levadas para lá no século XIX, para ajudar na conquista do interior gigantesco da ilha-continente. Mais para o final do século foram construídas ferrovias – afinal, era uma possessão britânica, e por onde passam britânicos fazem-se ferrovias. E então os camelos se tornaram dispensáveis. Deixados livres, soltos, no interior do país, multiplicaram-se fantasticamente. Nos anos 1970, calculava-se que havia no país cerca de 50 mil camelos – mais que na Arábia Saudita. Mais que no Egito. Mais que em qualquer país.
Quanto aos cangurus… Aparecem dois cangurus, ao longo do filme, me parece. Quando Robyn encontra o primeiro canguru que o espectador vê, está acompanhada por um ancião aborígene, Mr. Eddy (Rolley Mintuma): para atravessar um determinado trecho ali da Austrália Ocidental, era obrigatório que ela estivesse acompanhada por ancião aborígene. E ela acaba se dando bem com Mr. Eddy. Ao pegarem o canguru, um filhotinho, Robyn rapidamente pega um facão – mas Mr. Eddy a impede de usá-lo. Só homens, ele diz. Só homens têm o direito de matar e cortar a carne de um canguru.
Mais adiante, quando o filme já se aproxima do fim, Robyn vê um canguru morto, e chega perto dele para aproveitar sua carne numa fogueira – mas então se lembra do que dizia Mr. Eddy, e recua.

Na Austrália – exatamente como em todos os países das Américas –, os conquistadores brancos maltrataram demais, para usar uma palavra extremamente suave, as populações nativas. Já se mostrou o maltrato dos aborígenes australianos em outros filmes. Por eles, e por este Tracks aqui, dá para perceber também que alguns grupos de australianos brancos, ao contrário dos primeiros colonizadores, têm o maior respeito pelos costumes dos aborígenes.
Robyn, naturalmente, é desse time, dessa linha.
E os realizadores do filme também, é claro. Na abertura, depois dos nomes das empresas produtoras (não há créditos iniciais), há o seguinte letreiro: “Aborígenes e moradores da Ilha de Torres Strait devem tomar cuidado ao ver este filme, porque ele contém imagens e vozes de pessoas mortas”.
Não imagens e vozes de pessoas mortas, como em O Sexto Sentido. De pessoas que já morreram. Pessoas que viviam em 1975, 1977, e já morreram. Pelo jeito, os aborígenes não gostam de ver imagens e ouvir vozes, não estão acostumados a ver imagens e ouvir vozes de pessoas que já falecer.
Não poderiam jamais entrar no Louvre, no Prado, no Masp, no MIS. Ou ver filmes com Gary Cooper, Bruno Ganz, Audrey Hepburn. Ou ouvir Frank Sinatra, Jacques Brel, John Lennon.
O roteiro se baseia no livro da própria Robyn
Nos créditos finais, são mostradas as fotos de Robyn Davidson que apareceram na capa e em várias páginas da edição de maio de 1978 da National Geographic. É ali que o espectador pode ver a fantástica semelhança física entre ela e a atriz escolhida para interpretá-la.
Em uma foto aparece também o fotógrafo Rick Smolan – e o ator Adam Driver está muito parecido com ele. Foi uma bela escolha essa de Mia Wasikowska e Adam Driver para os papéis.
A matéria publicada na National Geographic foi escrita pela própria Robyn, e causou tamanho impacto que foi sugerido que ela expandisse seu relato. Ela topou, e o relato virou um livro, Tracks – que serviu de base para o roteiro do filme.
Segundo informa o IMDb, os primeiros planos de se fazer um filme sobre a façanha de Robyn começaram antes mesmo do nascimento de Mia Wasikowska, em 1989. Houve um projeto em que Julia Roberts faria o papel da jovem explorada; em outro, o papel caberia à australiana Nicole Kidman. Creio que valeu a pena esperar por este Tracks: Mia Wazikowska está ótima.
Mas fiquei imaginando o que Robyn Davidson terá achado do filme, terá achado de ver o retrato que o diretor John Curran, a roteirista Marion Nelson e a jovem Mia fizeram dela.
Porque a Robyn que o filme Tracks mostra é uma criatura estranha. Tudo bem: tem aquele lado incrível, fantástico, de pessoa forte, trabalhadora, decidida, intrépida, corajosa, sem medo do trabalho duro, sem medo dos perigos, dos rigores de uma caminhada por 2,7 mil quilômetros. E de uma competente domadora de camelos, uma perfeita “camel lady”, como ficou sendo conhecida ao longo de sua travessia por meia Austrália.
Mas é uma pessoa estranha. Parece, muitas vezes, antissocial. Parece não gostar da companhia de seres humanos, parece preferir estar com animais do que outras pessoas. Muitas vezes é de difícil trato, brusca, arredia. Tosca, diria minha filha.
Robyn Davidson teve uma infância difícil. Nascida em 1950 em uma fazenda de gado em Miles, Queensland, na Austrália Oriental, a segunda de duas irmãs, perdeu a mãe quando tinha 11 – a mãe se matou. O pai a entregou para uma tia paterna, Gillian, que colocou a garota num internato em Brisbane. O filme mostra, em flashbacks, como, de uma só vez, a menina Robyn (aí interpretada por Lily Pearl) perdeu a mãe, a casa e o cachorro amado, que o pai sacrificou porque na casa da irmã que criaria a filha não havia lugar para ele. (A foto abaixo é de Robyn na época da travessia.)
Depois da histórica jornada de sete meses do centro da Austrália ao Oceano Índico, Robyn se envolveu com o movimento em defesa das terras dos aborígenes. Durante os anos 80, teve um relacionamento com o escritor indiano Salman Rushdie. Dedicou-se ao estudo de povos nômades na Austrália, na Índia e no Tibet. Ela própria teve uma vida um tanto nômade, desde cedo, já que passou por Miles, depois Brisbane, depois Sydney, depois Alice Springs. E, mais tarde, já madura, morou em Sydney, Londres e na Índia, a Wikipedia não especifica em que cidade; vive agora no interior de Victoria, a uma boa distância da maior cidade do Estado, Melbourne.

Anotação em março de 2019

Trilhas/Tracks
De John Curran, Austrália, 2013
Com Mia Wasikowska (Robyn Davidson)
e Adam Driver (Rick Smolan, o fotógrafo), Rainer Bock (Kurt Posel, o patrão sem caráter), Rolley Mintuma (Mr. Eddy, o aborígene ancião), John Flaus (Sallay, o bom patrão), Robert Coleby (Pop), Emma Booth (Marg), Jessica Tovey (Jenny), Melanie Zanetti (Annie, a amiga), Lily Pearl (Robyn Davidson criança), Carol Burns (Mrs. Ward), Darcy Crouch (Tolly)
Roteiro Marion Nelson
Baseado no livro autobiográfico de Robyn Davidson
Fotografia Mandy Walker
Música Garth Stevenson
Montagem Alexandre de Franceschi
Casting Nikki Barrett
Produção See-Saw Films, HanWay Films, Screen Australia, Cross City Films, The South Australian Film Corporation
Cor, 112 min (1h52)

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