6 de dezembro de 2024
Colunistas Sergio Vaz

Nirlando Beirão

Não era apenas um dos melhores textos do país. Era muito mais. era o caráter perfeito.

Nirlando Beirão não era apenas um dos melhores textos do jornalismo brasileiro. Sim, isso ele era, e tenho absoluta certeza de que ninguém discutiria sobre o assunto. É uma certeza unânime.
Nirlando veio uma ou outra geração depois de Nelson Rodrigues, de Otto Maria Carpeaux, mas tenho certeza de que, se o tivesse conhecido, se tivesse convivido com ele, o homem teria cravado, como cravou sobre Otto, que, quando Nirlando começava um texto, o resto da redação se calava.
Digo isso aí sobre o Nelson Rodrigues com a mais calma certeza do mundo – muito embora jamais tenha tido a honra, o orgulho, de trabalhar na mesma redação de Nirlando, nunca, jamé de la vi.
O texto de Nirlando Beirão sempre foi unanimidade – apesar de Nelson Rodrigues ter dito tantas vezes que toda unanimidade é burra e que “mineiro só é solidário no câncer”. Nelson, aí, errou duas vezes.
Mas o que eu gostaria de realçar não é tanto o texto – é o caráter.
Nirlando Beirão foi uma das pessoas de melhor caráter que conheci na vida.
***
Gostaria de contar duas historinhas. Outras notas podem entrar, mas a base é uma só, me ocorre escrever, citando a canção. Uma é um caso profissional; a outra é puramente pessoal, intransferível, feito dor de dente.
A história profissional é absolutamente verdadeira, assim como a outra, a pessoal – mas, das duas, não me lembro de detalhes, de exatidões.
Foi no começo dos anos 90, mas não sei precisar a data.
Nirlando estava, na época, fazendo a coluna da página 2 do Caderno 2 do Estadão. Em 1993 ele sairia do jornal para fundar a revista Caras, e a coluna ficou então a cargo do Cesar Giobbi.
Estava para dar uma vacância, um vazio, no cargo de diretor de redação do Estado. E várias pessoas importantes dentro da S. A. O Estado indicaram o nome do Nirlando. Não posso afirmar com absoluta certeza, mas creio fortemente que entre esses nomes estavam os de Sandro Vaia e Elói Gertel, então diretores da Agência Estado, e de Rodrigo Lara Mesquita, o diretor da Agência e patrão de todos nós.
Ser o diretor de redação de um dos três maiores jornais do Brasil é, teoricamente, pelo menos, o sonho maior de qualquer jornalista. É o ápice absoluto da carreira, o posto mais alto, o topo da escada, o trono.
O cavalo encilhado passou na frente dele. Ficou ali rodeando o cara.
Nirlando simplesmente disse que não, não estava a fim. Não queria. Estava bem onde estava.
Me lembro da reação de alguns dos meus amigos.
A gente não está acostumado a quem diz não ao cavalo encilhado que está ali para conduzir você ao sonho maior, ao ápice absoluto da carreira, o posto mais alto, o topo da escada, o trono.
Meu amigo e mestre Sandro Vaia, que anos mais tarde assumiria exatamente aquele posto de diretor de redação do Estado de S. Paulo, e faria durante alguns anos uma administração brilhante, comentou na época que Nirlando estava sendo bobo.
Tive, então, e tenho hoje, certeza absolutamente diversa da do Sandro. Nirlando não foi bobo: foi sábio.
O quê? Pegar aquele trono – mas que é também o maior abacaxi que um jornalista pode pegar na vida?
Nirlando disse não à mosca azul. Preferiu ficar onde estava – um lugar que certamente dava a ele algum prazer, e, sobretudo, não lhe torrava o saco.
Tenho profunda admiração não apenas pelos jornalistas, mas por todas as pessoas que não dão bola para a mosca azul da ambição, da fascinação pelo ponto mais alto da escada.
***
Não que não soubesse chefiar. Não, não, nada disso.
Sabia, perfeitamente. Chefiou diversas redações – e seguramente chefiou bem. Só não estava a fim, àquela altura da vida e da carreira, ali pelo início dos anos 90, de ferrar a vida em nome da carreira. Fez naquele momento, creio eu, a opção preferencial pela qualidade de vida.
Os acasos da vida são fascinantes. Por um acaso, acabei, em meados dos anos 80, sendo o editor de Cultura da revista Afinal – e uma das pessoas da editoria era Marta Góes, a mulher de Nirlando na época e praticamente a vida inteira. Não nos dávamos bem, Marta Góes e eu; nunca nos demos bem. Mas nos respeitávamos, creio.
Creio também que jamais comentei com ela – até porque só conversávamos o essencialmente necessário para o funcionamento da editoria – que conheci Nirlando em 1957, quando eu tinha 7 anos e ele, 9.
Mas os acasos da vida são realmente fascinantes, e então, em 1990, aconteceu de Nirlando – bom caráter sempre – trabalhar na campanha de Mario Covas para o governo do Estado de São Paulo. Na campanha estava Mary Zaidan.
Mary sempre me contava – estávamos ali no segundo ano de namoro, já praticamente casando – como era gostoso ter Nirlando na equipe. Como ele era bem-humorado, como ele fazia brilhar as reuniões de que participava.
***
Eu mesmo nunca tive o prazer, a honra, de ter trabalhado com o Nirlando. Nem de ter sido seu amigo.
Fomos vizinhos e quase amigos quando éramos garotos, no bairro da Serra, em Belo Horizonte.
Eu morava no prédio da Rua do Ouro que dava de frente para a Rua Ramalhete – ela mesma, a rua da deliciosa canção do Tavito.
Exatamente diante do prédio, bem na esquina da Rua do Ouro com a Ramalhete, era a casa da família Beirão. Baita, bela casona.
Aprendemos a ler na mesma escola, o Grupo Escolar do Instituto de Educação – ele dois anos antes de mim e de seu irmão Paulo Sérgio, este, sim, meu colega de classe.
A historinha vem agora.
Não me lembro dos detalhes. Mas, um dia lá, certamente incentivado pelo meu irmão Arnaldo, que trabalhava com vendas, fui falar com o Nirlando sobre uma enciclopédia tal e qual (não tenho ideia hoje de qual era). A venda resultaria em uns trocadinhos.
Me faltavam argumentos para tentar vender o produto, e então falei pouco.
Nirlando percebeu minha falta de jeito, percebeu tudo, e disse algo do tipo: – “Sei, sei. Você não está sabendo muito bem vender, mas é uma enciclopédia. Se eu comprar, você ganha alguma coisa. Compro.”
Não creio que o Nirlando se lembraria dessa história. Ele viveu tantas mais importantes.
Eu jamais esqueci.

O Boletim

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