28 de abril de 2024
Colunistas Mary Zaidan

Salve o papa!

Pela primeira vez, o Brasil de Lula dá aval a documento contra uma ditadura “amiga”.

A notícia é alvissareira: na sexta-feira, 23, ainda que sob pressão, o Brasil endossou resolução da OEA que critica o regime de Daniel Ortega e pede democracia na Nicarágua. O aval ao documento é uma bem-vinda virada da política externa de Lula, que há 40 dias se negou a assinar declaração semelhante da Comissão dos Direitos Humanos da ONU. Responde também ao papa Francisco depois de o pontífice apelar ao presidente brasileiro para que ele interceda pela libertação do bispo de Matagalpa, dom Rolando Álvares, condenado a 26 anos como “traidor da pátria”. Resta saber a extensão da mudança: se chegará às demais ditaduras latinas – Cuba e Venezuela – ou se a posição é pontual, para o papa ver.

Lula gosta de ressaltar sua amizade com Ortega. Voltou a fazê-lo depois da visita ao Vaticano. Sem condenar o ditador e a perseguição implacável que ele faz às congregações e comunidades religiosas, minimizou: “A única coisa que a Igreja quer é que a Nicarágua libere o bispo para vir para a Itália. Vou falar com o Ortega”.

Dados do relatório mensal nicaraguense Presas y presos políticos apontam que depois do banimento de 222 detentos para os Estados Unidos, em fevereiro, com cancelamento de cidadania, inclusive dos candidatos oposicionistas, a Nicarágua mantém pressão sobre os críticos do regime. Entre os 64 que continuam presos, 4 são sacerdotes e 16 ligados a igrejas e entidades católicas. Quase 3 mil ONGs e todas as empresas de mídia independentes foram fechadas, lançando no exílio mais de 200 jornalistas.

Na Venezuela do também amigo Nicolás Maduro, tratado com rapapés por Lula em recente visita ao Brasil, há relatos de quase 16 mil civis presos arbitrariamente desde 2014, 875 deles processados sumariamente por tribunais militares. Por lá, as violações aos direitos humanos estão longe de ser “narrativas” de opositores, ao contrário do que Lula, acintosamente, tentou fazer crer. De acordo com o observatório Human Rights, agentes da Força de Ações Especiais torturaram e mataram mais de 19 mil pessoas entre 2016 e 2019 nas chamadas “Operações de Libertação do Povo”. O país, cujo êxodo bateu em 7,1 milhões de pessoas, tem hoje oficialmente 245 presos políticos.

Em Cuba, presidida por Miguel Díaz-Canel, que esteve com Lula na sexta-feira, em Paris, os números de prisioneiros considerados dissidentes do regime são controversos: algumas entidades falam em 660, outras em mais de 1.500. A inexatidão não diminui o peso das vistas grossas às tiranias do governo cubano, tema que jamais incomodou a amizade de Lula com o regime da Ilha.

Em 2010, Lula se negou a receber um grupo de dissidentes que pedia pela vida de Orlando Zapata Tamayo, classificado pela Anistia Internacional como preso de consciência. Em greve de fome por 82 dias, Tamayo morreu pouco antes de o presidente brasileiro chegar para uma visita oficial a Cuba. Na época, o petista não só apoiou as declarações insanas do então presidente Raúl Castro – “Ele estava em greve de fome. Morreu e lamentamos…em meio século, nós não assassinamos ninguém aqui; aqui ninguém foi torturado”-, como não quis saber de falar com dissidentes. Visto sob a ótica de hoje, talvez tenha faltado um papa.

A aversão aos Estados Unidos é o elo de ligação de Lula com o trio de ditadores latino-americanos. O mesmo que move o presidente do Irã, Ebrahim Raisi, que há uma semana visitou os três países com intuito confesso: são “amigos com inimigos comuns”. A diferença – citando uma entre as muitas – é que ao contrário do Irã e das ditaduras latinas que demonizam os Estados Unidos, o Brasil nada ganha em fazê-lo. E tem muito a perder.

O presidente Joe Biden foi o primeiro a reconhecer a vitória de Lula em um momento de risco para a democracia brasileira. É também com os Estados Unidos, responsáveis por 18% de nossas exportações, que se tem a mais diversificada parceria comercial, incluindo produtos industrializados, minoritários nos 21,7% da carteira chinesa. Ou seja, para o Brasil, o Grande Satã nada tem de capeta, a não ser na cabeça de uma esquerda atrasada e juvenil que insiste em enxergar o mundo nos moldes da primeira metade do século passado.

Mesmo com olhos voltados aos tempos idos, Lula avançou algumas casas. Falou grosso com os países ricos, incluiu a premiê italiana Giorgia Meloni, líder da extrema direita, no rol de encontros bilaterais e descartou jantar com o príncipe saudita que presenteou o ex Jair Bolsonaro com joias milionárias. Coroando a semana, depois de tentar e não conseguir amenizar o tom da declaração da OEA, o Brasil de Lula, pela primeira vez em três mandatos, avalizou um documento contra uma ditadura “amiga”.

Mais do que forte e afetuoso, o abraço do pontífice em Lula foi iluminado. Salve o papa!

Fonte: Blog do Noblat

Mary Zaidan

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

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