10 de dezembro de 2024
Colunistas Mary Zaidan

Ruas vazias falam mais alto

Nada melhor para o presidente do que a briga

Protestos na Avenida Paulista contra e pró-Bolsonaro
Miguel Schincariol/Getty Images

Grupos pequenos filmados bem de pertinho para parecer multidões, carreatas com buzinaços ao lado de hospitais, plateia na rampa do Palácio do Planalto entre abraços, beijos e selfies com o “mito”. Xingamentos e agressões físicas a jornalistas. Fora STF, Fora Congresso, Intervenção Militar Já, bandeiras de Israel e da Ucrânia. Todos os domingos o presidente Jair Bolsonaro tem se lambuzado com mimos desse tipo de seus fiéis. Agora, ele inverte tudo: ferozes, antidemocratas e “marginais” são os outros.
Provocadas sem se saber ao certo por qual lado, as cenas de violência no primeiro domingo em que os movimentos pró-democracia decidiram ir às ruas, soaram como um round extra depois do gongo final para um Bolsonaro abatido por todos os lados. De pronto, pediu para os seus fanáticos evitarem os domingos, sabendo, claro, que isso não ocorreria. Aposta tudo no caos.
O palco de encomenda – e infiltrados para tal não estão descartados – é quebra-quebra, atiradores de pedras, destruição, gás lacrimogênio.
Nada melhor para o presidente do que a briga de rua para desanuviar as tensões recentes provocadas pelos dois processos em curso na Suprema Corte. Um sobre a sua confessa tentativa de interferir na Polícia Federal, motivo da demissão do ex-juiz Sérgio Moro do Ministério da Justiça, e outro, mais aflitivo, que esmiúça seus filhos, empresários e políticos amigos unidos em redes de notícias falsas. E ainda pelo TSE, que nessa semana inicia julgamento de impugnação da chapa que o elegeu por motivo similar: o uso de dinheiro ilícito de empresas nessas redes para fermentar mentiras.
Uma pancadaria entre torcidas permite ainda apontar os contras como “terroristas”, o que fez e continuará fazendo Bolsonaro vibrar. Pode até, nos delírios do presidente, dar um empurrão a uma sonhada intervenção armada (militar ou não) em nome da ordem.
A conceituação muito particular e avessa que o presidente faz de liberdade, só válida para os seus apoiadores, e de democracia, que na cartilha dele inclui desobediência civil, impedem o desdenho a tal desvario. Muito menos o esforço para agradar as corporações militares, em especial as polícias estaduais sob comando dos governadores, cuja insubordinação já foi incentivada pelo presidente.
Soma-se à rota do perigo a obsessão por armar a população – “eu quero todo mundo armado” –, que na semana passada teve um toque a mais no reforço à milicianos, com a decisão do presidente de liberar ao público fuzis 5.56 e 7.62, até então de uso exclusivo das Forças Armadas.
Mais do que tudo, a guerra das ruas ajuda a embaçar o foco no ponto que mais impacta negativamente o seu governo: o pouco caso com a pandemia.
Rechaçado até pelo ídolo Donald Trump, que condenou a forma de o Brasil agir diante da multiplicação de infectados e mortos, Bolsonaro sentiu os efeitos danosos do vírus. Não sob o país, mas no seu perfil no Twitter, essa sim, sua verdadeira preocupação.
Depois de a Fundação Getúlio Vargas apontar ou aumento de críticas e a queda seguidores devido ao coronavírus, Bolsonaro até tentou se consertar na inauguração do primeiro hospital de campanha federal, em Águas Lindas, Goiás. “Do fundo do coração, torço para que pouca gente venha para cá, que é sinal de que não precisa de atendimento”.
Pronto. Uma única e rápida menção ao flagelo que já matou mais de 35 mil brasileiros. Em seguida, voltou ao discurso de sempre: reabertura o comércio, facilidades para importação de armas, renovação de carteira de aviador, suspensão da troca de tacógrafos e de chip nas bombas de combustível. Tudo, menos o essencial: o combate à pandemia.
Como se vê, há motivos de sobra para que as ruas em balbúrdia sejam desejadas pelo bolsonarismo.
Não há espaço mais democrático do que as ruas. Elas foram determinantes para alcançar o sufrágio universal, avançar na conquista por direitos civis, liberdades de expressão e comportamento. Seu grito derruba e forja governos, cria e destrói ditaduras, ceva guerras e paz.
No Brasil, de estopim para o golpe militar de 1964 elas se vestiram para a campanha pelas Diretas Já. Desiludidas, depuseram dois presidentes da República eleitos pelo voto que motivara tanta luta. E voltaram a falar alto nas jornadas de junho de 2013.
A democracia está umbilicalmente atada às ruas. A causa é nobre, urgente. Mas hoje, em nome do distanciamento social que a ciência e o juízo exigem e contra os incitamentos à violência que só a Bolsonaro servem, torço para que elas estejam vazias. É assim que a sua voz se fortalece em tempos de pandemia e de perigosas provocações.
Fonte: Blog do Noblat

Mary Zaidan

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

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Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

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