29 de abril de 2024
Colunistas Mary Zaidan

A lei? Burle-se a lei

Com aval do Supremo, Lula tem abusado do expediente de mudar leis de forma heterodoxa.

Estátua da deusa da Justiça que fica em frente ao Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO)
Foto: Vinícius Schmidt/Metrópoles

Se o Congresso Nacional resiste em mudar uma determinada lei, faça-se a alteração por decreto; se um estatuto interno desagrada, mexe-se na composição da direção ou do conselho responsável por fixá-lo e pronto. Mesmo não sendo o primeiro e único a lançar mão dessas práticas – o antecessor Jair Bolsonaro as adorava -, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem abusado do expediente, não raro com uma mãozinha do Supremo.

Antes mesmo da posse, a Lei das Estatais se tornou alvo de Lula. Aprovada pelo Congresso em 2016 no rastro da Operação Lava-Jato, a lei 13.303 estabeleceu limites às intervenções políticas nas empresas públicas. Uma de suas virtudes – criar quarentena de 3 anos para nomeação de políticos – foi o que a vitimou. Em dezembro, na correria para assegurar a indicação do petista Aloizio Mercadante para o BNDES, a Câmara aprovou a redução da quarentena para 30 dias.

Viu-se mais tarde que Mercadante nem precisaria de tal manobra, mas como viriam outras nomeações à frente o melhor era abrir a porteira de vez. Ainda assim, a mudança empacou no Senado. Não teria validade se o agora ex-ministro do STF Ricardo Lewandowski ter extrapolado suas funções e legislado sobre a matéria. Atendendo a uma solicitação do PCdoB, ele simplesmente suspendeu as restrições impostas pela lei. Sem tirar nem pôr, substituiu o Parlamento e deu uma valiosa ajuda ao governo, que precisava acelerar nomeações, e aos políticos, ávidos por cargos.

Mesmo inconstitucionais, decretos para mudar leis são usuais. Bolsonaro lançou mão de vários para alterar a Lei do Desarmamento, tema tortuoso dentro do Congresso. Obteve êxito em alguns, como o que aumentou estratosfericamente o número permitido de compra de armas e munições; fracassou em outros porque o STF suspendeu a farra.

Ciente de que não teria maioria parlamentar para mudar o Marco do Saneamento, Lula lascou dois decretos para beneficiar empresas estatais que perderiam de vez os privilégios na oferta dos serviços de água e esgoto. Na sexta-feira, enquanto Lula encerrava sua viagem à China, a contestação dos decretos chegava ao Supremo. Desta vez a Corte deve arbitrar contra os interesses de Lula, e a Câmara, via o presidente Arthur Lira, já fala em invalidar os decretos.

Ao STF – sempre ele – coube também sanar o absurdo criado pela lei da boa-fé da ex Dilma Rousseff, que em 2016 liberou a comercialização de ouro, vendido sem nota fiscal e sem identificação de origem. A bondade fez multiplicar as áreas de garimpo ilegal, a bandidagem e o tráfico, em especial na Amazônia.

Agora, o governo corre atrás do prejuízo. Na verdade, corria. Há exatos dois meses, a Casa Civil afirmou que enviaria uma Medida Provisória para regular a comercialização do ouro. O prazo perdeu a importância porque o ministro do Supremo Gilmar Mendes foi mais rápido: arvorou-se em Executivo e Legislativo e determinou a suspensão da lei.

Mesmo que a intenção frente à leniência dos demais Poderes seja louvável, é absurdo que uma decisão desse tipo saia do STF, que não deveria entrar no mérito de uma lei, limitando-se a analisar sua constitucionalidade.

Nos conselhos deliberativos das empresas estatais, das autarquias e fundações, as regras são modificadas para satisfazer o paladar do chefe. Na Petrobras, Caixa, Banco do Brasil… Por decreto, Bolsonaro mudou a composição do Conselho da Amazônia, retirando dele a participação de governadores e de representantes de ONGs. Desmontou o Programa Nacional de Apoio à Cultura, transferindo para o ministro da área todas as deliberações sobre os incentivos da Lei Rouanet.

Lula, felizmente, retomou a modelagem anterior, mas a sua turma também apronta molecagens. A mais recente delas, um escárnio.

Para não perder o cargo, o ex-governador do Acre, Jorge Viana, mudou o estatuto interno da Apex (Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos) que exigia inglês fluente do seu presidente. Aproveitou o embalo e retirou restrições às nomeações de diretores, cargos que até então só podiam ser ocupados por funcionários de carreira.

Ser monoglota não é crime, especialmente em um país que mal-mal ensina sua língua pátria e faz esforço zero para incluir o aprendizado de um segundo idioma no currículo formal. Mas mudar normas de organizações públicas em benefício próprio é acintoso.

Propor e mudar leis é parte do jogo – basta que se sigam os ritos. Mas nem o Supremo nem governo algum, de esquerda ou direita, podem se impor acima de tudo e todos. Além de desprezar o Parlamento e criar insegurança jurídica, tais modos ferem a organização do Estado e as próprias leis, algo incompatível com a democracia.

Fonte: Blog do Noblat

Mary Zaidan

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

Jornalista, mineira de Belo Horizonte, ex-Rádio Itatiaia, Rádio Inconfidência, sucursais de O Globo e O Estado de S. Paulo em Brasília, Agência Estado em São Paulo. Foi assessora de Imprensa do governador Mario Covas durante toda a sua gestão, de 1995 a 2001. Assina há mais de 10 anos coluna política semanal no Blog do Noblat.

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