Uma forma interessante de checar como está pensando o cidadão brasileiro é conversar durante corridas com motoristas de aplicativos. São pessoas que interagem com outras de diferentes classes sociais e ouvem muitas histórias.
Nessas viagens acontece de tudo e conversa-se de tudo também. E não se pode dizer que esses motoristas, de modo geral, sejam mal informados ou que não tenham posições definidas sobre os temas que afetam o país, para o mal e para o bem.
Uma coletânea de cinco meses de corridas, com anotações de conversas informais feitas em cerca de 50 corridas, na capital paulista, em trechos variados. Nenhum método de pesquisa convencional foi aplicado. Só bate-papo mesmo. Deste universo, uma única mulher.
Em poucos minutos, após uma apresentação formal ao adentrar nos carros, a maioria do profissionais se guarda para observar o comportamento do passageiro, até este quebrar o silêncio. Como está o trânsito, se vai chover, se as corridas estão fracas, e por aí vai. Quando o silêncio vai comandar outra vez, vale provocar com qualquer bobagem. Eles se divertem com assuntos diversos e sem ordem. Óbvio que depende dos interlocutores.
Em geral, sentem-se desencorajados a interagir com aqueles passageiros que grudam no celular e só cumprimentam ao entrar e sair dos carros. São os “chatos”, que conversam o tempo inteiro com pessoas do outro lado da linha, comentam coisas pessoais, mentem para chefes e cônjuges e até quebram o pau. Desagradável.
“Tem coisas que a gente não precisa saber”, confessou um deles. Outro ri por dentro e diz: “quem diria! Com aquela pose toda!”. Valendo para homem ou mulher; esse cuidado eles tomam, dependendo de quem está no banco de trás. Se você der corda, ele até conta a história toda. De todo modo, é alguém anônimo, com registro apenas no sistema.
E o nível de cidadania também é possível detectar quando são perguntados sobre temas mais sérios e o que pode melhorar na mobilidade da cidade.
O tema preferido, porque se tornaram especialistas em circular por todos os cantos da cidade, é a qualidade das vias, seguido dos vários limites de velocidade numa mesma avenida; das ciclovias mal desenhadas que os impedem de embarcar alguém e que acabam no meio de um poste, por exemplo; e da falta de modernização geral, para transpor grandes entroncamentos e acesso à pontes. “Faz tempo que ninguém faz nada, nenhuma obra importante. Só tem enrolação com impostos altos”. Basta constatar o estado crítico da estrutura da maioria das pontes da cidade, que ficaram paradas para obras, após acidentes. Só para ficar nisso, e eles têm razão.
A provocação ideal é não induzir respostas. Deixar que comentem livremente, apenas modulando o bate-papo, para o assunto não estancar rápido.
Interessantes são as opiniões numa mesma semana. Dois disseram que certas empresas e hospitais, ao fazerem suas reformas, deveriam incluir recuos na calçada para permitir que possam pegar e deixar passageiros, sem interromper o trânsito e com segurança. Cobertos de razão.
Nas grandes metrópoles não há políticas para isso, cada um faz o que quer e, em geral, com estacionamentos pagos por terceiros. O local de embarque e desembarque praticamente não existe. As cidades mais antigas obviamente também não.
As conversas podem esquentar se os assuntos incluírem a política nacional. Muitos se sentem incomodados por não saberem das reações que terão pela frente. É só quebrar o gelo, adiando o tema para um pouco depois. Alguns se soltam e se animam em perguntar antes o que você acha disso ou daquilo. Inteligência emocional.
A pandemia, os cuidados no contágio e as medidas econômicas interessam sim. E muito. Alguns disponibilizam álcool em gel, balinhas e até máscaras para os esquecidos. É preferível incentivar as boas práticas do que correr riscos de ver passageiros tocarem aqui e ali e dispararem perdigotos às suas costas. “Tem muita gente sem noção que não quer saber de cumprir regras e não acredita que a Covid é tudo isso”. Destes vale a recusa da corrida porque os motoristas “têm família e não são obrigados a correr riscos”.
Quanto às preferências políticas, a questão é diversa, mas a maioria é confessadamente intolerante à corrupção. O que aconteceu nos últimos anos é inconcebível e os julgamentos são bem severos. “Chega de ladrão tirando tudo de nós”.
Outro tema controverso é a “fake news”. Eles ouvem de tudo e, em certa medida, ficam confusos com algumas “verdades plantadas”, para causar o medo, como essa história de moeda grudando no braço onde se tomou a vacina. Nas pausas, eles checam na internet e utilizam mais o método de perguntar do que escrever. Mas nem sempre dá, mas no boteco onde eles costumam ir para comer um prato feito ou um sanduba, esses temas são recorrentes.
E há também as preferências nesse aspecto. Boa parte tem preferências sobre as vacinas. É nítida a arrancada na opção pela menos polêmica. E eles sabem em que SUS está aplicando qual na cidade toda. A que tem maior índice de proteção e menor reação, ganha de lavada, já que a picada é inevitável. Isso é pessoal, mas a opinião é tácita e inteligente.
Outro tema recorrente é a crise econômica, a fome cada vez maior, a quantidade de gente pedindo comida nos semáforos e praças, as sacolas cada vez menores nos bagageiros e até mesmo pessoas que faturam como pedintes. “Tem uma senhora (grupo étnico omitido na edição) que frequenta o hipermercado (empresa omitida na edição) que usa uma roupa bem surrada e consegue juntar um bom dinheiro diariamente, ao abordar consumidores no estacionamento”. Segundo o motorista, agora ela faz rodízio em outros lugares porque ficou “manjada”.
Para deixar a conversa mais leve, vale perguntar os filmes que estão assistindo nos streamings. Os mais jovens assistem comédias e filmes infantis com os filhos. Já os mais velhos gostam de encerrar a noite com o que estiver à mão, mas o cansaço vence.
Enfim, a jornada foi vasta e enriquecedora. Um apanhado resumido de um olhar de pessoas que vivem na cidade e transitam por todos os bairros, mas têm suas opiniões e aprendem no exercício da profissão.
Por detrás de cada pessoa que passa horas ao volante, no trânsito insólito e vivendo cada agrura que descreveram há uma família que depende deles para sobreviver. Mostram fotos dos filhos, se orgulham em dizer que trabalham cada centavo para educá-los. Uns já formaram filhos médicos, advogados, engenheiros e, mesmo os mais jovens têm as mesmas aspirações.
O mais insólito da última corrida foi a decepção provocada inadvertidamente por esta, quando o motorista, na casa dos 30 anos, que tem uma menina de oito meses, conta que agora quer “tentar” um menino.
Sem querer eu disse: “depende de você”. “Como?”. “É o homem que decide o sexo da criança”.
Ele ficou tão atônito que entrou na rua errada. Percebi a cilada, tarde demais.
Perguntou-me aflito como fazer isso.
Respondi que não tinha como, isso era definido na hora da fecundação. Quis saber se teve aulas de biologia na escola básica e me disse que não.
Fiquei frustrada e tive que dar um jeito de explicar de forma simples. Mas falar de cromossomos e gametas não é.
Disse o que pude e o orientei como fazer a busca na web. Confessou: “juro que pensei que fosse a mãe”.
Livrei as mulheres dessa culpa ancestral, mesmo sem esse propósito. Pedi desculpas por dizer assim sem pensar, supondo que ele soubesse.
Causou tristeza reconhecer que a escola atual suprimiu conhecimentos tão básicos dessa gente simples. Esse motorista nunca irá me esquecer.
Sempre vale prestigiá-los.
Pedir um favor para ajudar com sacolas até o elevador do prédio e depois dizer: “você é muito gentil! Obrigada! Deus o abençoe! Boas corridas!
Acende os sorrisos e um tantinho de felicidade momentânea. Uma quebra numa rotina tão cansativa.
Jornalista, editora e assessora de imprensa. Especializada em transporte, logística e administração de crises na comunicação.