Por conta de uma aberração lógica, pela qual os 11 ministros devem ter poderes divinos, fica eliminada da conversa a única obrigação real da Corte
A resposta automática que se obtém a cada vez que alguém crítica algum desmando do Supremo Tribunal Federal, por mais grosseiro que seja, é: tudo bem, mas o STF é o pai e a mãe das instituições brasileiras, e por isso tem de ser respeitado em qualquer circunstância. “Decisão do Supremo não se discute; se cumpre”. Por conta dessa aberração lógica, pela qual os onze ministros devem ter poderes divinos (e responsabilidade zero pelas decisões que tomam) fica eliminada da conversa a única obrigação real do STF – aquela, justamente, que faz dele um alicerce do Estado de direito. É a sua função, essencial, de decidir se a Constituição brasileira está ou não está sendo cumprida.
A estátua da Justiça, em frente ao prédio do STF, em Brasília – Foto: Dida Sampaio/Estadão
O STF atual faz tudo, menos cuidar do respeito à Constituição. O que essa última decisão do ministro Fachin tem a ver com alguma coisa constitucional? Ele decidiu que todos os processos que envolvem o ex-presidente Lula por corrupção e lavagem de dinheiro, incluindo aquele em que ele já foi condenado em terceira e última instância, não valem mais nada. Por que não valem? O ministro não diz nada sobre a culpa do réu – provada em três instâncias, perante nove juízes diferentes, no caso da primeira condenação. Diz apenas que Lula não deveria ter sido processado em Curitiba, e sim em Brasília.
Nenhum dos oito magistrados que julgaram a correção da primeira sentença achou nada de anormal ou de irregular, ao longo destes últimos cinco anos. Não se achou nada porque nunca houve nada de errado com as condenações de Lula, nem quanto à sua culpa nem quanto a qualquer outra questão. Isso de julgarem o indivíduo aqui ou ali é uma das questõezinhas processuais mais elementares da praça; qualquer advogado de porta de cadeia, quando não tem mais o que dizer em favor do réu, pode alegar que ele não está sendo julgado no “foro” certo. Que raio de grande assunto constitucional é esse, para ser decidido no Supremo – onde, ainda por cima, o ministro que julga o caso joga no lixo cinco anos de decisões da Justiça?
A decisão do ministro Fachin, caso confirmada, vai provar uma vez mais que o STF continua morto como corte constitucional. Virou um escritório de despachos com a função de colocar para fora da cadeia gente que deveria estar dentro, de corruptos primitivos a traficantes de droga. Está sendo intensamente usado, ao mesmo tempo, como ferramenta para satisfazer interesses políticos do mais baixo nível – hoje em dia, quando perdem uma votação no Congresso, ou querem impor a sua vontade sem que se vote nada, os interessados correm direto para o STF. Se estiverem do “lado certo da contradição” – o lado em que está a maioria dos onze ministros – vão levar. No caso, um ministro que trabalhou ativamente no PT decidiu, na prática, que Lula pode ser candidato às próximas eleições presidenciais de 2022.
O STF, ao proceder como tem procedido, não apenas deixou de exercer o seu dever básico de fiscal do cumprimento da Constituição. Está, com decisões como a de Fachin, agindo concretamente contra ela. Não pode existir segurança jurídica, nem estado de direito, e nem democracia, quando o principal tribunal de justiça do país funciona como um partido político e seus juízes operam como militantes partidários ou ideológicos. O que vale, aí, não é o que está escrito na lei. É o que satisfaz as ideias e os interesses de cada ministro, dos seus amigos e dos seus clientes. É onde estamos.
José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.
José Roberto Guzzo, mais conhecido como J.R. Guzzo, é um jornalista brasileiro, colunista dos jornais O Estado de São Paulo, Gazeta do Povo e da Revista Oeste, publicação da qual integra também o conselho editorial.
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