Foi em 1965, o ano em que nasci. Há 57 anos, portanto. No famoso festival de música folk de Newport, nos Estados Unidos, Bob Dylan, então com 24 anos mas já um astro consagrado pelo sucesso de “Blowin in the Wind”, sobe ao palco munido de jaqueta de couro e guitarra elétrica. Surpresa. Mesmo para Dylan, era um ato de ousadia impensável: como assim usar um instrumento elétrico no templo da música acústica americana?
Dylan foi vaiado impiedosamente. Tocou apenas 3 canções e se retirou do palco. Voltou logo em seguida, os olhos rasos de lágrimas, com um violão acústico, para encerrar a apresentação com dois clássicos: “Mr. Tambourine Man” e “It’s All Over Now, Baby Blue”.
Lembrei de Dylan e do festival de Newport ao tentar assistir “Os Anéis do Poder”, série que apregoa se basear na obra riquíssima de J.R.R. Tolkien.
Digo que “tentei assistir” porque sucumbi, logo após uns 2 episódios: não reconheci Tolkien em nada ali, à exceção de sua mitologia, apropriada indevidamente: há elfos, há orcs, há paisagens deslumbrantes, mas… não é “O Senhor dos Anéis”. Fiquei matutando sobre o porquê e cheguei à uma, dentre muitas conclusões, que ajuda a explicar a rejeição do público a essas obras retomadas, ou atualizadas – ou como queiram chamar.
Há que se respeitar o legado. O substrato afetivo no qual essas obras fincaram raízes profundas. Quando se altera algum dos fatores já estabelecidos na memória das pessoas, o cérebro não reconhece aquilo como o que se apresenta ser.
Quem ama obras como “O Senhor dos Anéis”, ao ler os livros ou assistir os filmes e séries, não está em busca de mero entretenimento. Quem ama obras como “O Senhor dos Anéis” deseja sentir-se parte daquele momento: quer galopar com Gandalf ou voar em dorsos de águias gigantes, ouvir os tambores de batalha e o sibilar do aço cortando, contemplar os Ents e percorrer as estradas até Mordor.
Quem ama obras como ”O Senhor dos Anéis” não deseja diversão: e sim IMERSÃO.
Quando algo rompe com a delicada tessitura harmônica estabelecida em antigas memórias afetivas, o cérebro não reconhece aquilo como verdadeiro. Quebra-se, portanto, a ilusão de realidade. O sentimento de pertença àquela obra. Em outras e mais simples palavras, a magia termina.
Tal raciocínio ajuda a explicar a rejeição aos “Anéis de Poder” e pode ser aplicado a outras obras que sofrem da mesma síndrome: o desrespeito ao legado e à memória afetiva.
Talvez, daqui a algumas décadas, novas memórias sejam implantadas pelas obras de hoje. Assim como Bob Dylan persistiu em seu caminho pelo rock – e, ao contrário do que imaginavam os fãs de folk, sem abandonar a música acústica.
Quem sabe as gerações do futuro saberão harmonizar a necessidade do novo com o respeito pelo passado.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.