Levantei silenciosamente, cogitei passar um café, zanzei pela casa adormecida e escorreguei de novo para a cama.
Continuei ouvindo a chuva nos caibros.
Há uma espécie de oração muda nesse ato, quase esquecido em um mundo aparentemente sem caibros, beirais, cornijas.
Vivemos em uma sociedade de ângulos e linhas retas, um mundo em que, como dizia Scruton, a arquitetura dedicou-se a desumanizar o ambiente em que o ser humano vive, transformando curvas acolhedoras em “projetos” tão sem alma quanto Westworld.
Vivemos em uma sociedade de sentimentos em linhas retas.
Quem pode parar e ouvir a chuva nos beirais, se nem quase beirais há mais? Ou o simples desejo de ouvir a chuva cantar?
Ouvir as canções que a chuva canta e recolher seus segredos é um pouco como nos reconectar à um universo meio mágico e semidesconhecido hoje:
Onde nos sentimos exatamente aquilo que somos, primatas agrupados em cima de árvores e observando com olhos um tanto assustados o poder da natureza.
Um dia chuvoso traz um pequeno mundo de promessas delicadas:
retomar “Grande Sertão: Veredas”, na nova edição primorosa que achei;
retomar o bluesy para o qual compus a letra;
retomar, recomeçar, recompor, reescrever, renovar.
Daqui a pouco vou levantar, vou passar um café e começar o dia.
Mas agora não. Agora vou só prosseguir acolhendo o que a chuva tem para me dizer.
Professor e historiador como profissão – mas um cara que escreve com (o) paixão.