16 de maio de 2024
Colunistas Joseph Agamol

Eu encontrei o sr. Tempo

Sentado em um banco do parque, em uma alameda deserta. Apresentou-se a mim como uma versão de Leonard Cohen ou Ian McKellen, um senhor bem vestido, de terno cortado sob medida. Talvez para ganhar minha confiança. Ele lia um livro. Tentei descobrir qual. Não consegui. Ele me ouviu chegar, fechou o livro, esperou.

  • salve! – e levou dois dedos à testa. Era minha forma de cumprimentar, e ele decerto o sabia. Entendi como provocação.
    Acerquei-me, desconfiado. Ele sorriu.
  • venha, eu não mordo! – e, percebendo que eu observava o livro, segurou-o, pensativo.
  • esperava um tabuleiro de xadrez, talvez, como no filme de Bergman? – e sorriu de novo, um sorriso amplo, de quem tinha todo o tempo do mundo. E tinha. Percebi que seus dentes eram aguçados como os de um lúcio. Virou a capa do livro, de modo que eu a pudesse ver: Stephen King.
  • seu amigo King me descreveu de uma forma maldosa, não acha? O tira malvado…
  • e você não é assim? – abandonei as reservas e confrontei-o.
  • acho que, de mim, você não tem o que reclamar – ele disse, com serenidade – Tenho-o tratado bem. Poupei-o de muitos dissabores. Marquei pouco sua face. E só agora dispus o branco em seus cabelos e barba. Mantive suas memórias. Permito que visite seu passado. Regulo seus vislumbres do futuro. Sim, eu o tenho tratado bem.
    Ele não deixava de ter razão. Baixei os olhos, um tanto envergonhado. Ele me fitou duramente.
  • você me chamou aqui, e eu vim, por uma deferência especial a quem tanto fala de mim no que escreve. Diga-me o que quer! Não me faça perder meu tempo – e riu, diante da própria incongruência, os dentes pontudos me lembrando um antigo conto do próprio Stephen King.
  • eu quero um acordo – grasnei.
  • que espécie de acordo? – Ele me observou, os olhos entrecerrados, agora um negociador habilidoso – o que tem para me oferecer, que eu já não tenha?! E riu, de novo, agora um tanto obscenamente.
    Acerquei-me dele, baixei até seu ouvido – e, ao fazê-lo, senti o perfume das eras: a poeira levantada nas arenas de gladiadores, o suor dos trabalhadores nas pirâmides egípcias, o sangue empapando a terra de ninguém nas planícies do Marne e de Verdun, a água salgada respingando em minha face na Normandia, o silencioso solo lunar. Sussurrei.
    Ele ouviu, afastei-me, e ele me olhou, e eu pude ver sua verdadeira face, a que os homens sempre procuraram e temeram, e entendi o porquê de seu disfarce, e ele disse apenas:
  • tem certeza?
    Leventei a cabeça, fechei os olhos e aspirei os últimos haustos do ar livre de setembro de 1945. Meus lábios forjaram um “sim”. Quando abri os olhos, ele tinha sumido, deixando-me na dúvida de sua benção – ou não.
    Eu encontrei o sr. Tempo.
Joseph Agamol

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

Professor e historiador como profissão - mas um cara que escreve com (o) paixão.

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